“Eu vou encontrar Kraven. Vou enfrentar o canalha. Mas não como uma aranha. Como um homem.”
– Não contém spoilers
Meu primeiro contato frente A Última Caçada de Kraven, por tantos referenciada como a melhor história do amigão da vizinhança, não foi das melhores, mesmo sendo uma impressão positiva. Resolvi dar uma chance à obra novamente, tempos depois, e todos os comentários sobre ela fizeram mais sentido. Embora não seja, necessariamente, na opinião deste aqui, a melhor história do aranha, é certamente a mais densa e mais complexa, com arte e roteiro brilhantes.
No fim da década de 80 os quadrinhos passavam por uma revolução. Um ar notoriamente mais sério, complexo e pretensioso começava a tomar forma nos quadrinhos de super-heróis e a causar uma grande revolução. Clássicos como Watchmen e O Cavaleiro das Trevas começavam a ser publicados em 1986, não é coincidência que A Última Caçada de Kraven tenha vindo um ano depois. Foi uma espécie de resposta da Marvel, uma tentativa de seguir esse fluxo revolucionário. Mas não se trata apenas de uma obra que absorveu influências, mas que soube passar uma marca própria e autêntica a ser disseminada. Veja uma das mais recentes e polêmicas sagas do herói, Homem-Aranha Superior, por exemplo, que contém em seu plot características que lembram A Última Caçada de Kraven.
Na trama, Peter Parker, recém casado com Mary Jane, precisa se localizar em um tubilhão de coisas: a nova vida de casado, a onipresente preocupação com o perigo que seus entes queridos correm – desencadeado pela recente morte de Ned Leeds – e um novo perigo nas ruas, o monstro canibal que vive nos esgotos, Rattus. Em meio a isso, surge o personagem protagonista da obra, Kraven, que arquiteta um plano audacioso que consiste em, finalmente, realizar seu objetivo de capturar e superar sua maior presa: o Homem-Aranha.
Antes mesmo do ótimo roteiro, a qualidade gigantesca que salta aos olhos de cara é a arte de Mike Zeck, algo que faz jus a ser chamada de impecável. O artista sabe traçar movimentações com maestria, dando uma fluidez impressionante à HQ. Em nenhum momento há sequer uma fração de dúvida do que está acontecendo em cena, Zeck deixa bem claro o que ocorre em cada quadro, acertando bastante também na caracterização e emoção dos personagens. Como se não fosse o bastante, consegue ainda arriscar uma arte-sequencial diferente e brilhante que dá ares cinematográficos à história, uma montagem de valor progressivo e grandioso, preenchendo uma atmosfera dramática espetacular.
A HQ discute temas muito interessantes, como a dualidade herói vs alter ego. Afinal, o que vale mais seria o título “Homem-Aranha”, ou aquele ser humano que veste a máscara? Em tempos onde vemos uma massiva decisão das editoras de passar o manto de um herói para outro personagem, muitas vezes de outra etnia ou gênero, esse diálogo parece ser de extrema relevância. Aqui, acima de tudo, é ressaltada a figura de Peter Parker e sua importância. Ele que fez do cabeça de teia um dos personagens mais emblemáticos da casa das ideias. Sua humanidade, suas reações e decisões frente aos problemas é o que sempre moveu grande parte dos fãs.
Ainda há questionamentos filosóficos sensacionais inseridos na forma de uma pequena faísca. “Todo homem tem sua aranha” – medita o caçador. E a figura desse inseto permanece por toda a história através de metáforas muitas vezes longe de serem simples de explicar, evidenciando tal entidade como quase um mito, uma lenda. Seria a “aranha” o maior obstáculo que cada indivíduo precisa enfrentar ao longo da vida? Seria esta uma alegoria ao grande medo (aqui desenvolvido em TODOS os personagens, seja Kraven, Peter, Rattus ou até Mary Jane) que insiste em nos perseguir?
A única ressalva da HQ reside nos monólogos de Kraven e, vez ou outra, do Homem-Aranha, soando repetitivos, quase como se tentassem forçar demais a carga dramática. Tal aspecto serve em grande parte para mergulhar profundamente na loucura do vilão, uma justificativa plausível para algumas das incômodas narrações do personagem. No entanto, a arte sequencial, o roteiro e todo o acabamento fazem disso um detalhe tão pequeno que será empecilho para apenas um ou outro leitor (esse chato aqui é um deles). Em relação a essa narrativa dos personagens, destaque ao famoso poema de William Blake, The Tyger, várias vezes revisitado durante a história, adaptado para “The Spyder”.
A saga poderia muito bem acabar no penúltimo capítulo, onde a caçada do vilão realmente tem seu fim, já que o último possui uma mera missão de finalizar o arco como um todo, entregando um desfecho a Rattus. Este derradeiro capítulo mantém a qualidade da obra, mas não a finaliza com o mesmo impacto que ocorreria se finalizado na parte anterior. De qualquer forma, o que Dematteis e Zeck nos reservam no fim de ambos os capítulos é espetacular visto através dos quadros. Se trata da verdadeira ampliação de importância de Kraven, indo fundo na psique do caçador, seu passado e sua relação rival e maníaca com o homem-aranha. A atitude do roteirista de pegar um vilão, convenhamos que bobo, criado por Stan Lee, e moldá-lo de uma forma extremamente inteligente, com raízes profundas de desenvolvimento, é algo admirável.
A Última Caçada de Kraven é, com toda certeza, uma das maiores e mais ousadas histórias do cabeça de teia. Uma relação antagônica entre Homem-Aranha e Kraven brilhantemente desenvolvida, além de bem estruturada em todos os quesitos. Dramática, trágica, filosófica, vai deixar um desconforto benéfico, instigando questões bastante interessantes, isso sem contar um enorme sentimento de satisfação de ter lido uma obra-prima dos quadrinhos.
Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven (Kraven’s Last Hunt – Estados Unidos – 1987)
Contendo: Web of Spider-Man #31-32, The Amazing Spider-Man #293-294 e The Spectacular Spider-Man#131-132
Roteiro: J. M. Dematteis
Arte: Mike Zeck
Cores: Bob Sharen, Janet Jackson, Mike Zeck
Letras: Denise Araújo
Editora original: Marvel Comics
Editora no Brasil: Editora Abril, Panini Comics, Editora Salvat
Páginas: 148