A maxissérie O Pistoleiro, segunda da Marvel Comics no universo d’A Torre Negra, de Stephen King, teve a 25ª e última edição publicada em dezembro de 2012 nos EUA. A série seguinte – A Escolha dos Três – somente começou em setembro de 2014. No entanto, esse longo intervalo foi intermitentemente ocupado por duas minisséries de duas edições cada e um one-shot passados no Mundo Médio, todos lançados ao longo de 2013.
A primeira delas foi O Conto de Sheemie (Sheemie’s Tale), inicialmente planejado como uma edição única que serviria de interlúdio entre A Jornada Começa e As Irmãzinhas de Eluria, mas que acabou adiada repetidas vezes e, quando finalmente saiu, foi convertida em uma minissérie de duas edições. Terra Maléfica (Evil Ground) é a segunda minissérie, também de duas edições e também passada no mesmo período da anterior, com uma estrutura de “história dentro da história dentro da história”. Assim Tombou Lorde Perth (So Fell Lord Perth) é o one-shot que encerrou esse ano de hiato de A Torre Negra nos quadrinhos e conta a história da lenda de Arthur Eld, antepassado de Roland Deschain, o último pistoleiro.
Ainda em 2013, essas histórias foram publicadas como encadernado, sob o título Last Shots que, aqui, traduzi como Últimos Tiros. As críticas que seguem são de cada uma dessas histórias e, como não houve publicação no Brasil, a tradução dos títulos (inclusive do encadernado) foi feita por mim, assim como foi no caso da maxissérie O Pistoleiro. Vamos lá então:
O Conto de Sheemie
(Sheemie’s Tale)
Narrado a partir da perspectiva de Stanley “Sheemie” Ruiz, o garoto com problemas mentais – mas que, na verdade, tem é grandes habilidades psíquicas – originalmente introduzido na mitologia da série em Mago e Vidro e que ajuda Roland e seu ka-tet a escapar das garras dos Caçadores do Grande Caixão e, depois do Rei Rubro, o pequeno conto é muito bem estruturado em termos de passagem de tempo e localização espacial. É que Robin Furth, grande estudiosa de Stephen King, escreve um roteiro que começa com Sheemie em Devar-Toi (prisão em que os psíquicos do Mundo-Médio são obrigados a usar suas habilidades para quebrar os feixes que mantém em pé a Torre Negra e toda a realidade) em Thunderclap, que só aparece no 7º e último livro da série e navega, a partir de seu ponto-de-vista, por praticamente toda a história do épico e até antes, já que começa com seu próprio nascimento.
Ainda que a história possa parecer confusa – e potencialmente é para quem não tiver lido os livros ou pelo menos as adaptações em quadrinhos anteriores – a estrutura de “sonho” e conto de fadas funciona muito bem, estabelecendo não só o nível dos poderes de Sheemie, como acrescentando elementos interessantíssimos à mitologia da série em geral, com o enfrentamento, pelo garoto, de criaturas marinhas primordiais que antecederam a Torre Negra e que as odeiam por justamente as ter relegado a apenas algumas regiões profundas desse universo que elas antes dominavam. Com isso, o conto vai bem além do que só lidar com Sheemie e acaba contando a origem da própria Torre, mesmo que sem detalhes minuciosos, muito provavelmente porque nem mesmo Furth – e até Stephen King – saiba como ela surgiu.
A arte de Richard Isanove é bem diferente da que estamos acostumados como vindo dele para essas HQs, com uma pegada variada entre o sombrio e o muito claro, estabelecendo uma ótima diferente entre Céu e Inferno, Bem e Mal, Torre e Criaturas das Profundezas. Ele também aproveita uma liberdade artística maior para emprestar um tom lisérgico à narrativa, misturando estilos artísticos variados, inclusive “colagem” quase lembrando o trabalho de Michael Gaydos em Alias.
O Conto de Sheemie surpreende pela qualidade e pelo aprofundamento da mitologia remota da Torre, além de mirar suas lentes para um personagem coadjuvante muito pouco aproveitado nos livros.
Terra Maléfica
(Evil Ground)
Como Robin Furth mesmo conta no posfácio de Terra Maléfica, a ideia da estrutura dessa minissérie – uma “história dentro de uma história dentro de uma história” – veio de sua leitura de uma das primeiras versões de O Vento Pela Fechadura, de Stephen King, o oitavo livro na saga da Torre Negra, mas que cronologicamente se localiza entre os quarto e quinto e livros. Lá, King usa esse exato artifício para contar três histórias diferentes, mas complementares, uma dentro da outra.
Assim, Furth imaginou um conto em que Roland, em algum momento após A Jornada Começa, mas antes de As Irmãzinhas de Eluria, dorme em cima de devil grass, uma grama alucinógena e sonha com um momento em seu passado – que pode ser fictício – em que ele e seu ka-tet original, depois de sabotar um acampamento de não-homens do exército de John Farson, escondem-se nas ruínas de um castelo milenar e, quando lá dormem, são atacados por “vampiros de almas”. Sheemie, que mantem-se acordado, acaba usando suas habilidades psíquicas para invocar sonhos de um passado remoto, inserindo Roland e seu grupo ali, o que permite que o herói desperte e tome providências para livrar-se dos monstros. Trata-se de uma histórias de fantasmas, basicamente, fantasmas tanto do mal quanto do bem que entram em conflito tendo Roland no fogo cruzado.
A grande questão é que o argumento de Furth não parece ser desenvolvido o suficiente para que Peter David consiga transformá-lo em um roteiro completamente lógico e fluido. Não há, na verdade, três histórias como a argumentista queria, mas apenas uma e mesmo assim fragmentada e sem um objetivo maior do que lidar com os antepassados de Roland, a começar por seu pai.
A arte de Richard Isanove não desaponta, claro, mas é o único elemento de efetivo destaque nesse conto de outra forma completamente descartável.
Assim Tombou Lorde Perth
(So Fell Lord Perth)
Uma das inspirações de Stephen King para a Torre Negra foi a mitologia arturiana, com a obsessiva jornada de Roland Deschain refletindo a do Rei Arthur pelo Santo Graal. Além disso, um dos antepassados do protagonista, Arthur Eld, não só compartilha o nome com o rei que tirou a espada da pedra, como também conta com uma riqueza mitológica cuja superfície é apenas arranhada ao longo dos livros e quadrinhos da série.
Assim Tombou Lorde Perth é, portanto, uma breve pincelada sobre Arthur Eld e seu primeiro grande feito: sua vitória sobre o gigante Lorde Perth quando ainda adolescente. Robin Furth e Peter David misturam as lendas arturianas com a de Davi e Golias e escrevem um simpático e heróico conto – que pode ser verdade ou apenas uma lenda – contado por Roland à uma moribunda Aileen, logo após A Batalha da Colina de Jericó. A simplicidade é a chave, com uma estrutura que segue a lenda bíblica quase que passo-a-passo, com direito até mesmo ao uso de uma funda, a mesma arma que Davi usa para derrubar Golias e depois posar para uma escultura de Michelangelo.
É uma leitura fácil e um belo encerramento para toda a segunda maxissérie em quadrinhos da Torre Negra, já que, à altura da publicação do one-shot, não havia certeza de que a série continuaria.
A Torre Negra: O Pistoleiro – Últimos Tiros (The Dark Tower: The Gunslinger – Last Shots, EUA – 2013)
Conteúdo: A Torre Negra: O Pistoleiro – O Conto de Sheemie #1 e 2, Terra Maléfica #1 e 2 e Assim Tombou Lorde Perth #1
Roteiro: Robin Furth (as três histórias), Peter David (Terra Maléfica e Assim Tombou Lorde Perth)
Arte: Richard Isanove (as três histórias)
Cores: Dean White (Terra Maléfica)
Letras: Joe Sabino
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: março e abril de 2013 (O Conto de Sheemie), junho e agosto de 2013 (Terra Maléfica), outubro de 2013 (Assim Tombou Lorde Perth)
Editora no Brasil: não publicado no Brasil na data de publicação da presente crítica
Páginas: 129 (encadernado americano)