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Crítica | A Testemunha (1985)

Peter Weir mergulhando em Hollywood sem perder sua voz.

por Ritter Fan
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Com O Ano que Vivemos em Perigo, Peter Weir flertou com Hollywood depois que perdeu o investimento das entidades governamentais australianas e a MGM, que antes iria apenas distribuir fora da Oceania, entrou com o dinheiro necessário e isso, então marcou a carreira do diretor daquele ponto em dia. A Testemunha, seu filme seguinte, foi inteiramente hollywoodiano, ou seja, não só com investimento americano, mas também com locações e elenco principal americanos. O que era natural que acontecesse, ou seja, a produção de obras mais vistosas que defenestram o lado autoral em prol do espetáculo, não aconteceu, porém, o que é sempre uma boa notícia e um sinal de que o diretor sabe trafegar bem entre esses dois mundos constantemente em conflito.

E isso é o que Peter Weir fez com seu primeiro longa dentro da inclemente máquina de produção audiovisual dos estúdios californianos, ou seja, criou uma obra perfeitamente “vendável” como um thriller policial, mas que continua a trabalhar o tema central da filmografia do cineasta até aquele momento: o conflito de culturas. Afinal, mesmo sendo muito bem sucedido em estabelecer suspense com a sequência em que Samuel Lapp (Lukas Haas), uma criança de uma comunidade Amish, testemunha o brutal assassinato de um policial no banheiro de uma estação de trem onde está com sua mãe Rachel (Kelly McGillis) a caminho de uma visita à sua tia depois do falecimento de seu pai, o que faz de A Testemunha o filme que é, é justamente o quanto mãe e filho se sentem como alienígenas em um mundo tumultuado e moderno e, depois e principalmente, o quanto o detetive John Book (Harrison Ford), ao descobrir uma conspiração no seio da delegacia de polícia onde trabalha, obrigando-o a fugir com Samuel e Rachel para o idílico local de onde eles vieram, sente-se não só um estranho numa terra estranha, como também um agente do caos em meio à utopia do século XIX em que os fazendeiros vivem.

Primeiro recuperando-se de um ferimento à bala graças aos cuidados de Rachel e, depois, permanecendo na casa da enlutada família Lapp para esconder-se das ameaças de fora, John é a chamada civilização sendo forçada goela abaixo de um povo insular que se mantém separado das influências da modernidade, seguindo regras comportamentais rígidas e tradicionais que, sob certo ponto de vista, os mantém “puros e inocentes”. Trata-se, muito claramente, de uma versão do colonialismo que Weir critica e comenta em todos os seus filmes anteriores (menos Confusão em Paris, o primeiro e menos conhecido deles) e que voltaria a fazer no ano seguinte, novamente com Ford como protagonista, em A Costa do Mosquito. Mas, assim como em Pocahontas e Dança com Lobos, a temática universal do estranho encantando-se com um novo olhar de mundo que essa imersão lhe proporciona faz-se muito presente e potente, com o diretor usando seu olhar apurado para levar à uma lírica convergência que torna possível alguns momentos marcantes como o contato de Samuel com o revólver de John e, claro, a aproximação romântica – na base do amor impossível – entre o policial e a fazendeira de luto.

Mas o que poderia ser muito facilmente um romance barato, raso e sem consequências é trabalhado à perfeição por Peter Weir que faz o melhor uso possível de Ford e McGillis (arrisco dizer, sem muito medo de errar, que, aqui, os dois têm as melhores atuações de suas carreiras) e da direção de arte de Stan Jolley e de fotografia de John Seale que, com filmagens em locação, criam um enclave de beleza e pureza que parou no tempo em contraste aos frenéticos e sujos centros urbanos do século XX que correm atrás do tempo. A aproximação entre os personagens é natural, ambos atraindo-se por um misto de curiosidade, oportunidade, fisicalidade e, possivelmente, amor mesmo, com Rachel revelando-se não como uma mulher simples que cegamente segue os mandamentos de seu povo, mas sim alguém determinada a experimentar o proibido, à deixar-se cair em tentação de maneira perfeitamente consciente, como um sutil e muito bem conduzido libelo de libertação feminina. E, do lado de John, é fantástica a maneira como Ford constrói um personagem que, nesse ambiente, hesita e até mesmo teme aproximar-se de Rachel, por saber que uma relação entre eles poderia destruí-los. Ele percebe muito claramente que um relacionamento amoroso entre eles é a manifestação mais evidente da perda do Paraíso, mas é justamente por Rachel também entender e, principalmente aceitar isso, é que eles vão em frente.

Conduzido pela trilha sonora hipnotizante do grande Maurice Jarre em sua segunda colaboração seguida com Peter Weir que transita entre o onírico e o eletrizante, A Testemunha faz outra coisa relevante especialmente no mundo atual em que os relacionamentos são distantes, via internet, ele nos faz lembrar da importância do verdadeiro senso de comunidade em que todos ajudam todo mundo, regra basilar da comunidade Amish retratada no filme. Isso ganha sua manifestação máxima na linda sequência em que vemos John Book, que se revela um carpinteiro (profissão original de Harrison Ford que ele continuou cultivando depois de seu estrelato), ajudando na construção de um celeiro para um casal recém-casado e onde podemos ver com mais destaque a presença de um estreante Viggo Mortensen em um papel sem falas como Moses Hochleitner, irmão de Daniel (Alexander Godunov, certamente mais lembrado – ainda que injustamente – por seu papel de braço direito de Hans Gruber, em Duro de Matar), por sua vez pretendente de Rachel.

Falando do elenco de apoio, é impressionante o trabalho de escalação feito pela saudosa Dianne Crittenden. Somente Harrison Ford tinha nome à época da produção, sendo obviamente o maior chamariz para o longa com seus icônicos papeis de Han Solo e Indiana Jones devidamente sedimentados na cultura pop. Mas A Testemunha é um normalmente esquecido caldeirão de futuros talentos, pois não só Haas, Godunov e Mortensen foram essencialmente descobertos aqui, como até mesmo McGillis e Danny Glover, este como o assassino do policial no começo do filme, eram fundamentalmente desconhecidos até serem escalados por Crittenden, o mesmo podendo ser dito de Patti LuPone, que vive Elaine, a irmã do protagonista que abriga Rachel e Samuel por uma noite na cidade e de Brent Jennings, que interpreta Elton Carter, detetive parceiro de John.

A Testemunha, que concorreu a seis estatuetas do Oscar, inclusive as de Melhor Filme e Direção (a primeira de quatro indicações de Weir) e levando as de Roteiro e Montagem, revela um cineasta maduro, capaz de negociar com maestria seu desejo de fazer mais do que apenas o básico que Hollywood exige e de continuar trabalhando temas que lhe são caros, ganhando a sempre desejável visibilidade que essa indústria proporciona. É a tempestade perfeita entre os mandamentos marketeáveis para fazer dinheiro para os executivos e o apuro técnico e autoral de um diretor que nunca realmente deixou de lado sua sede de fazer comentários sociais e políticos relevantes e caros para ele.

A Testemunha (Witness – EUA, 1985)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Earl W. Wallace, William Kelley (baseado em história de William Kelley, Pamela Wallace, Earl W. Wallace)
Elenco: Harrison Ford, Kelly McGillis, Josef Sommer, Lukas Haas, Jan Rubeš, Alexander Godunov, Danny Glover, Brent Jennings, Patti LuPone, Angus MacInnes, Viggo Mortensen, Frederick Rolf, Timothy Carhart, Richard Chaves, Robert Earl Jones
Duração: 112 min.

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