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Crítica | A Sombra e a Escuridão

O avanço do progresso, a colonização e os "leões assassinos" de Tsavo.

por Leonardo Campos
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Leões. Eles são imponentes e arrepiantes. Caçam em emboscada. De beleza extraordinária, possuem memória antropomórfica, dado que justifica a ação dos felinos que em 1898, atacaram diversos operários que trabalhavam durante a construção de uma ferrovia em Tsavo, região africana colonizada pela Inglaterra, acuada pelos franceses e alemães que também disputavam a dominância deste território que se transformou num palco para espetáculos ecológicos assustadores e sangrentos. Foram 135 vítimas e um atraso de nove meses no andamento da obra, paralisada pelo temor implementado pelos animais que até hoje estão expostos em um Museu Field, de Chicago, espaço cultural que comprou as feras mortas do caçador pelo valor de U$5 mil, valor ínfimo para o lucro gerado pelos visitantes que até hoje podem observar os animais que tiraram a paz dos operários desta região que sofria pelo processo de dominação britânica. Tudo ia bem até que em março do mencionado ano, os leões começaram a atacar e colocaram a obra no mapa da mídia da época, haja vista a forma incomum que ocorriam os incidentes, história transformada em livro, material levado para o cinema como A Sombra e a Escuridão, em 1996.

John Patterson (Val Kilmer) e Charles Remington (Michael Douglas) são os protagonistas desta jornada de horror inspirada no material comentado anteriormente. Ao seguir para a região com a missão de supervisionar a construção da ponte que busca ampliar o tráfego por cima do rio Tsavo, Patterson jamais imaginou viver uma história de medo e pavor tão profundos. Sob a direção de Stephen Hopkins, A Sombra e a Escuridão é uma narrativa filiada ao horror ecológico de luxo, comandado pelo cineasta com base no texto de William Goldman. Para alguns, os leões representavam uma figura demoníaca que impedia o progresso, por isso, as criaturas transformadas em monstros tinham em sua agenda comportamental incomum, predar seres humanos incautos, desnorteados pelos ataques premeditados e potencialmente perigosos. Remington é quem chega para colocar fim ao clima de horror, tarefa nada fácil de empreender.

Ao longo dos 110 minutos da produção, a direção de fotografia de Vilmos Zsigmond mergulha o espectador na região queniana com muita eficiência, com uso de ponto de vista, planos abertos e movimentação de câmera devidamente calculadas para a tensão já desenvolvida no roteiro. Veterano na condução sonora de filmes com alta carga emocional, Jerry Goldsmith entrega uma textura percussiva intensa, atordoante, conectada aos horrores vivenciados pelos personagens, trajetórias ficcionais que tem um ponto de partida igualmente apavorante na realidade. Para funcionar ainda melhor, A Sombra e a Escuridão conta com um trabalho bem realizado no design de som, assinado por Gary Mundheim, responsável por manter os leões fortemente presentes mesmo quando a câmera não contempla as criaturas em sua totalidade no enquadramento. Os efeitos visuais supervisionados pela equipe de Tim McGovern completam os requisitos visuais necessários para fazer a narrativa ser bem-sucedida visualmente.

Enquanto o personagem de Michael Douglas representa o arquétipo do caçador impiedoso que vê na força da natureza felina, uma imagem do demoníaco a ser aniquilado, tal como a figura vingativa do capitão da tripulação no clássico Moby Dick, de Herman Melville, o engenheiro interpretado por Val Kilmer luta para conseguir dar conta do seu trabalho e driblar as pressões de seus gestores e financiadores, incrédulos com a força de animais que minavam a cada dia, um empreendimento comandado pelos britânicos com bastante injeção de capital. O poder da moeda abundante aqui não conseguia, até determinado ponto, dar conta das demandas subjetivas que envolviam aspectos sociais, culturais e políticos alegorizados pela presença dos leões que tocaram o terror na época, chamados de Sombra e Escuridão, “monstros” com potencial cinematográfico, orquestrado por uma boa equipe técnica e representado por um elenco competente de protagonistas e coadjuvantes.

Estudos mais recentes demonstraram que os leões atacaram na época por fome mesmo, haja vista uma doença periodontal, algo que impedia as criaturas de se alimentar conforme os seus padrões selvagens. Supostamente, abcessos orais impediam que os leões utilizaram as mandíbulas para a costumeira pressão que segurava as suas presas igualmente velozes e fortes, para assim exercer a dominação necessária para a alimentação que não traz nada de apavorante, parte da cadeia alimentar selvagem que estudamos nos componentes curriculares voltados ao processo de compreensão dos fenômenos biológicos em nossas vidas e em seu entorno. Relatos exagerados se transformaram em lendas e os estudos mais recentes comprovam que muita coisa mencionada na história, inclusive, dados sobre ossos das vítimas, moídos nos ataques dos leões devoradores, foram parte integrante de uma visão ampliada dos fatos. Além da quantidade exagerada de vítimas dos documentos oficiais, algo em torno de 35, número bem menor que os registros que mencionam 135, fala-se também sobre a inserção de outros animais como predadores, sem vincular todas as vítimas aos dois leões que carregaram para sempre a culpa nessa história que é puro horror.

Caçados (The Ghost and The Darkness/Estados Unidos, 1996)
Direção: Stephen Hopkins
Roteiro: William Goldman
Elenco: Bernard Hill, John Kani, Michael Douglas, Tom Wilkinson, Val Kilmer
Duração: 109 min.

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