Alcântara Machado é um nome expressivo na história da literatura moderna no Brasil. A sua produção de destaque é a coletânea de contos dispostos em Brás, Bexiga e Barra Funda, textos voltados ao processo de radiografia do cenário urbano paulista nas primeiras décadas do século XX, era do surgimento de inovações tecnológicas e desdobramentos das revoluções industriais europeias, ressoantes em nosso território. A Sociedade é uma das histórias mais expressivas do conjunto, crítica ácida aos costumes da época, numa travessia de interpretações múltiplas, algo que vai da sociedade estabelecidas entre os personagens e suas trocas econômicas ao projeto de análise do espaço social em si, com seus relacionamentos por interesse, jogos de sedução envolvendo carros luxuosos e valorização dos seres humanos com base em suas posses. Tudo isso alocado numa narrativa envolvente e com desenvolvimento interessante desde os seus primeiros momentos ao desfecho carregado de ironia.
Narrado em terceira pessoa, A Sociedade nos apresenta, como já mencionado, o ambiente de São Paulo em constante expansão urbana e os acertos financeiros entre duas famílias, uma de imigrantes italianos em processo de estabelecimento na cidade e a outra, de habitantes locais, pessoas que já gozaram dos privilégios de sua classe econômica, mas no momento de articulação da história proposta por Alcântara Machado, encontra-se falida. De um lado temos os membros de um grupo exterior, a sofrer os preconceitos dos brasileiros e do outro, paulistas que viveram bons momentos num passado relativamente recente, mas que sucumbiram aos novos rumos sociais, políticos e industrias da sociedade. Neste encontro, um acerto financeiro será realizado, tendo em vista gerar benefícios para os dois grupos. Enquanto a família italiana ganha prestígio social ao se relacionar com uma família “importante”, os falidos serão exaltados com uma quantia generosa de dinheiro para recobrar o que chamam de “dignidade”.
Nessa história de laços matrimoniais em meio aos processos econômicos, podemos observar como o escritor destaca pontos da cidade, em especial, o bairro da Liberdade, local onde a narrativa se desenrola. Fidedigno ao seu contexto, o conto ressalta grandes marcas da época, numa exaltação do materialismo que demarca as ações dos personagens, indivíduos envoltos numa prosa enxuta, construídas com onomatopeias, sons oriundos das representações de uma sociedade agitada, em evolução intensa, característica marcante de um período que vai do desfecho do século XIX ao preâmbulo do século XX, era de mudanças também culturais, além das novas configurações econômicas. Aqui, as famílias de José Bonifácio de Matos Arruda e Salvatore Melli se unificam para a união entre Teresa Rita e Adriano Melli, jovens que se interessam mutuamente, não apenas amorosamente, mas pelos bens que podem ser conquistados com a oficialização da relação que “vai além” do amor romântico.
A decadência de um é a ascensão econômica do outro. É o que acompanhamos na trajetória destas figuras ficcionais que buscam, tal com observamos na contemporaneidade e em suas redes sociais, demonstrar os seus valores com base nas posses que dominam. A Sociedade nos mostra isso com o automóvel que Adriano utiliza para circular pelas ruas do bairro, tendo em vista conquistar as garotas com um bem que ainda hoje, é sinônimo de status social privilegiado, diferente da ideia básica do carro ocupar os espaços como meio de deslocamentos das pessoas em suas dinâmicas cotidianas de trabalho e demais tarefas pessoais. No cenário urbano que serve de palco para as ações dos personagens, o carro é uma espécie de fetiche, objeto material ao qual se atribuem poder e aclamação, sensações que estão presentes também em Gaetaninho, conto da mesma coletânea, texto que expõe o desejo de andar de carro por um viés irônico, tendo a morte como fim para que os anseios do personagem-título fossem alcançados.
Do momento histórico que delineia a história do conto ao contemporâneo, percebemos como o terreno da Publicidade e da Propaganda, por meio dos comerciais e do cinema, deu aos automóveis esse status de ascensão social, algo que pode parecer inofensivo para alguns, mas na verdade oferta perigo não apenas para condutores, mas aos que se encontram com estas figuras nas dinâmicas cotidianas de mobilidade urbana. O que precisamos refletir é a transformação do trânsito como reflexo desses valores que se tornam maiores que as próprias pessoas que os portam. Há, em quem dirige, como já expressado noutro texto sobre velocidade como expressão da masculinidade, uma sensação de poder que leva determinados indivíduos a estacionarem seus carros em locais proibidos, nas vagas para pessoas com deficiência, bem como em ações ilegais e antiéticas, mas corriqueiras, desde a ultrapassagem no semáforo que indica o sinal vermelho e o acelerar além dos limites permitidos de velocidade.
Uma possível reflexão transversal entre literatura e educação para o trânsito com o conto A Sociedade, de Alcântara Machado, é o debate sobre a transformação do humano em acessório e o protagonismo dados aos carros em nosso contexto social, pois vivemos uma era que, tendo como base as reportagens diárias sobre sinistros dos mais diversos no trânsito, os seres humanos se comportam como se fossem “os seus carros”. A sensação que temos durante a leitura é a mesma que o disposto, salvaguardas as devidas proporções, numa música recente sobre conquistas após a compra de um Camaro Amarelo, isto é, o rapaz pobre e simplório ganha destaque para o seu alvo amoroso após estar em posse de um automóvel conhecido por sua beleza, velocidade e simbologia de status privilegiado. Debater isso não é o que se convencionou a chamar de “mimimi” ou aderência ao rígido “politicamente correto”. É a constatação de fatos, parte não apenas de comportamentos do “outro”, mas de nós mesmos. Para refletirmos.
A Sociedade (Brasil, 1927)
Autor: Alcântara Machado
Editora original: Helios
3 páginas