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Crítica | A Sociedade da Neve

A metamorfose da tragédia.

por Ritter Fan
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Dois filmes sobre tragédias, uma fictícia e outra real, separados por quase exatamente uma década, marcaram – ou, talvez melhor dizendo, traumatizaram – minha vida cinéfila. O primeiro deles, de 1983, foi O Dia Seguinte, telefilme que lidava com a hipótese da efetivação de uma guerra nuclear e seus efeitos em uma cidadezinha americana. Isso em pleno pico da Guerra Fria que tomava conta dos noticiários da época era como ver um documentário de fazer os cabelos da nuca se arrepiarem. O segundo foi Vivos, segunda longa de ficção (o primeiro foi a produção mexicana de baixo orçamento Sobreviventes dos Andes, de 1976) sobre o time uruguaio de rúgbi e agregados que, em 1972, ficaram isolados no meio da Cordilheira dos Andes depois que o avião que os transportava caiu, levando-os a medidas desesperadas. Tratava-se de uma produção hollywoodiana encabeçada por Ethan Hawke e dirigia por Frank Marshall que sem dúvida tem seu valor, mas que carrega alguns problemas de concepção.

Quando soube que o catalão J.A. Bayona, diretor do potente, mas falho, O Impossível, retornaria ao gênero das “tragédias reais”, adaptando o terceiro livro jornalístico sobre o incidente nos Andes (cada um dos filmes anteriores foi baseado em um livro diferente), desta feita pelo jornalista uruguaio Pablo Vierci, minhas lembranças de Vivos retornaram com força e eu fiquei igualmente temeroso e curioso pelo resultado, com a balança pendendo mais para a curiosidade quando o longa não só foi o escolhido pela Espanha para representar o país no Oscar, como ele também passou a figurar na lista dos 15 finalistas da Academia na categoria de Melhor Filme Internacional. Depois de conferir A Sociedade da Neve, fico feliz em constatar que Bayona não só não perdeu a mão, como ele a refinou, com o aceno ao Oscar sendo mais do que merecido, mesmo que, em termos de conteúdo, o longa não traga grandes novidades.

O que quero dizer com isso é que A Sociedade da Neve não conta uma nova história ou revela fatos que antes eram desconhecidos. Quem já assistiu Vivos ou mesmo já leu algum dos livros jornalísticos, já conhece cada elemento que Bayona aborda ao longo de 144 minutos de projeção. O que importa de verdade é como o cineasta desafiou-se ao apresentar basicamente “a mesma coisa” em um formato muito próprio e diferente que consegue aliar a violência gráfica do acidente com uma abordagem que quase parece um experimento sociológico na forma de filme, em que convenções do gênero são defenestradas e substituídas por abordagens ousadas sobre apresentação e construção de personagens que dão um toque de novidade à obra e que criam uma atmosfera de comunidade que é raro de se ver em filmes sobre situações extremas como essa.

Usando O Impossível apenas como breve base comparativa, temos que lembrar que, lá, todos os personagens centrais são claramente definíveis e identificáveis, com o roteiro empregando tempo, ainda que breve, em sua construção e com o desenvolvimento lidando com atos e escolhas claros deles. Em A Sociedade da Neve, certamente para ecoar o título, que é o mesmo do livro, o enfoque de Bayona é no grupo, é no conjunto de sobreviventes e sua luta desesperada para sobreviver ao frio, à fome, às avalanches e ao mais puro desespero. Há um personagem – Numa Turcatti, vivido por Enzo Vogrincic Roldán – que faz as vezes de narrador, mas mesmo aí as convenções são subvertidas na medida em que a narrativa evolui. O que acaba acontecendo é que todo o elenco, quase que completamente formado de atores uruguaios e argentinos de primeira viagem, é uma massa orgânica uniforme que passa pelas agruras em conjunto e, mais ainda, em uma espécie de simbiose comunitária, e isso mesmo quando uma grande decisão precisa ser tomada pela sobrevivência (estou sendo críptico em razão dos poucos que porventura não conheçam os fatos angustiantes que colorem o périplo do jovem grupo).

Numa é como um fio guia, como uma forma de deixar o espectador confortável com alguém que possa ser chamado de protagonista, ainda que essa definição, no final das contas, acabe sendo desafiada em retrospecto. E a escolha em se usar um personagem para criar essa sensação de familiaridade é acertada, pois é muito difícil, quiçá impossível, segurar um filme, especialmente longo como este, sem manter um mínimo de estrutura narrativa tradicional. Para ao mesmo tempo criar a sensação de unicidade física e espiritual entre os sobreviventes, Bayona recorre a intensos e inclementes close-ups dos rostos dos personagens com uma constância incomum sobretudo em longa com diversos nomes no elenco, com essa estratégia gerando os dividendos desejados por grande parte do tempo que acaba inclusive valorizando as majestosas tomadas em plano aberto que evidenciam a insignificância de todos ali perante a força inimaginável da natureza, cortesia de um trabalho impecável de direção de fotografia de Pedro Luque. O contraste entre espaço confinado e desesperador com o espaço aberto e libertador é tão eficiente que chega a ser decepcionante que esse longa não tenha sido lançado nos cinemas, nem que fosse em circuito limitado.

A preocupação de Bayona com o espírito de comunidade daquele pequeno grupo é tanta que ele não perde tempo nas preliminares, o que acaba criando um início até um tanto quanto afobado e confuso, mas que logo abre espaço para as tomadas do acidente em seu estilo quase cinema verité, com impactos visuais violentos acompanhados por uma arquitetura sonora de trincar os dentes de tão realista e assustadora, algo que ganha mais força ainda com a trilha sonora pontual de Michael Giacchino, por sua vez, diria, um pouco fora de sua zona de conforto. Quando a poeira baixa, o que era um grupo jovem e alegre se metamorfoseia no organismo único que mencionei mais acima, com a condução de Bayona criando todas as oportunidades para o espectador ser tragado para esse novo – e quase único – status quo em que, mesmo com vidas por um fio, o que realmente fica é mensagem positiva de apoio mútuo, algo que o roteiro verbaliza talvez por mais vezes do que deveria, sendo sincero.

O Dia Seguinte e Vivos tiveram o poder de traumatizar em suas respectivas épocas. A Sociedade da Neve, mesmo não se esquivando dos horrores gráficos da tragédia, das mortes e das decisões – para muitos compreensivelmente inaceitáveis – que tiveram que ser tomadas em prol do grupo, tem, ao revés, o poder de curar, de unir, de olhar com um viés esperançoso para a humanidade, de pinçar o que há de bom, de realmente valioso, em meio ao desespero, desesperança e perdas incomensuráveis. Trata-se de um filme que, quando tudo acaba, consegue encontrar outro significado para a palavra tragédia.

A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve – Espanha/Chile/Uruguai, 04 de janeiro de 2024)
Direção: J.A. Bayona
Roteiro: J.A. Bayona, Bernat Vilaplana, Jaime Marques, Nicolás Casariego (baseado em livro de Pablo Vierci)
Elenco: Enzo Vogrincic Roldán, Matías Recalt, Agustín Pardella, Tomas Wolf, Diego Vegezzi, Esteban Kukuriczka, Francisco Romero, Rafael Federman, Felipe González Otaño, Agustín Della Corte, Valentino Alonso, Simón Hempe, Fernando Contigiani García, Benjamín Segura, Rocco Posca, Luciano Chatton, Agustín Berruti, Juan Caruso, Andy Pruss, Santiago Vaca Narvaja, Esteban Bigliardi, Paula Baldini
Duração: 144 min.

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