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Crítica | A Singularidade

Crise nos Infinitos Universos.

por Ritter Fan
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Lembro-me apenas esporadicamente de compositores especializados em obras televisivas, mas Bear McCreary  sempre foi e continua sendo um nome que permanece em minha mente desde quando, embasbacado a cada episódio, assistia o reboot de 2003 de Battlestar Galactica, cujo original que teve apenas uma temporada, por sua vez, tendo sido uma de minhas séries favoritas do final dos anos 70 e começo dos anos 80. Pesquisando sobre lançamentos de 2024 em quadrinhos, eis que me deparei com A Singularidade (The Singularity, no original), que, para minha completa surpresa, tinha o nome do compositor em destaque, o que imediatamente me deixou curioso e, em seguida, frustrado pela relativamente pouca quantidade de informação sobre a obra.

Trata-se, na verdade, de um projeto multimídia de McCreary e de seu irmão Brendan que conta com um álbum conceitual, shows ao vivo e, sim, uma HQ de pouco menos do que 150 páginas escrita por Mat Groom. Como no álbum (que não é objeto da presente crítica, mas que recomendo fortemente que ouçam, pois eu, que sou musicalmente incapaz, gostei muito), que é repleto de participações especiais como as de Slash, Rufus Wainwright, Joe Satriani, Kim Thayil e Scott Ian, além das vozes dos atores Lee Pace, Danai Gurira e Ryan Hurst, a graphic novel conta com um pequeno exércitos de desenhistas cuidando da arte dos vários curtos capítulos, dentre eles os brasileiros Danilo Beyruth e Rod Reis, além de Federico Bertoni e Matias Bergara, o que permite que uma grande variedade de estilos e de pegadas criativas fundam-se em uma obra que, surpreendentemente, parece una, sem aquela sensação de estarmos lendo pequenos contos completamente diferentes um do outro em termos visuais.

Para quem lê quadrinhos, talvez a melhor forma de explicar o que é A Singularidade, é dizer que se trata de uma versão enxuta – e narrativamente bem melhor – do clássico Crise nas Infinitas Terras, da DC Comics em que uma entidade misteriosa, chamada apenas de Vermelho, destrói as diversas realidades enquanto o protagonista, conhecido apenas como Olhos Azuis, morre e renasce de maneira diferente (espécies e gêneros diferentes, ainda que sempre humanoide) em cada universo, guiado por outra entidade misteriosa que serve de guia, mentora e, por vezes, até inimiga. É perfeitamente possível, só com essa descrição, ver, respectivamente, o Anti-Monitor, o Pária e a Precursora da criação de Marv Wolfman, que são, claro, a essência da saga citada, com o conceito de McCreary e Groom beneficiando-se, claro, por não ter que inserir uma quantidade impossível – e muitas vezes inútil – de outros personagens.

Enquanto que os capítulos curtos de A Singularidade, em um primeiro momento, impeça o leitor de criar conexão com Olhos Azuis, ao poucos Groom desenvolve sua narrativa não-linear ao longo de várias vidas do personagem intercaladas por trechos de sua primeira vida e consegue criar um personagem de cunho trágico que precisa testemunhar a destruição de infinitos universos e a perda de infinitos entes queridos ao longo de uma sucessão de vidas longas e curtas que acabam das mais diferentes maneiras, mas que sempre têm a chegada do Vermelho para marcar esses momentos finais. Quando Groom finalmente faz de Olhos Azuis um efetivo personagem e não apenas um clichê ambulante, a narrativa ganha em corpo e em velocidade, com as viradas de páginas tornando-se inevitáveis como a destruição dos universos, em uma demonstração do controle do roteirista sobre seu texto, que é acompanhado pelas belíssimas artes da equipe de desenhistas que refestela-se na concepção de mundos e nas versões de Olhos Azuis (e também da “Precursora”, já que ela tem a habilidade de mudar de forma) e em passar os detalhes dessas novas ambientações em um obrigatório piscar de olhos ao leitor.

O niilismo e a entropia, que estão no DNA da narrativa, normalmente têm conotações negativas e pesadas, realmente finalistas e destrutivas, mas, de alguma forma, Mat Groom consegue reduzir esses conceitos às suas essências e, com isso, fazê-los trabalhar em prol do que podemos classificar de uma aventura multiversal metafísica que é, também, uma clássica jornada de autoconhecimento do protagonista. Não se deve esperar explicações mirabolantes e muito menos científicas, mas, apenas, o bom e velho “círculo da vida” trabalhado com muito vigor e pancadaria em uma explosão de criatividade que diverte na mesma medida em que faz pensar. Olhos Azuis poderia muito bem ser meramente um “super-herói” se estivesse inserido em algum universo conhecido de quadrinhos, mas, aqui, ele é, apenas, uma figura melancólica que busca compreender o porquê de ele ter que passar pelo que passa. Sinceramente, eu gostaria que o roteirista tivesse dedicado mais tempo às perdas do protagonista de forma a dar mais relevo à sua existência e tragédia, mas a escolha de usar apenas um exemplo disso também cumpre bem o seu papel, de certa forma transformando algo de escala inimaginável em um momento muito pessoal na vida de Olhos Azuis.

O projeto A Singularidade de Bear McCreary é fascinante e ousado em todas as suas facetas, mostrando a versatilidade do compositor. Na música, ele cria um passeio dinâmico de rock ‘n roll instrumental e, nos quadrinhos, ele e Mat Groom contam uma história de sacrifício, morte e renascimento em uma escala tão monumental quanto pessoal que leva o leitor a uma viagem narrativa que, sem dúvida alguma, une muitos clichês, mas que sabe manejá-los ao longo da trajetória de Olhos Azuis. Resta saber se dá para ler a HQ enquanto se escuta o álbum, algo que ainda não tentei, mas que pretendo em breve.

A Singularidade (The Singularity – EUA, 2024)
Criação: Bear McCreary, Mat Groom
Roteiro: Mat Groom
Arte: Ramón K. Pérez, Danilo Beyruth, Matias Bergara, Patricio Delpeche, Federico Bertoni, Eleonora Carlini, Lorenzo Colangeli, Valeria Favoccia, Eduardo Ferigato, Marco Locati, Helena Masellis, John L. Pearson, Lola Bonato, Simone Ragazzoni, Rod Reis, Riccardo Robaldo, Stefano Simeone, Toby Cypress, Morgan Sorne
Cores: Natália Marques, Rod Fernandes
Letras: Becca Carey
Editora: Image Comics
Data original de publicação: 08 de maio de 2024
Páginas: 146

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