Há uma categoria específica de obras de arte, bem comum, por sinal, cuja característica é não conciliar a mensagem que se espera transmitir com a forma, com os elementos estilísticos que vão comunicar o discurso. A Santa do Impossível, filme selecionado para a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, encaixa-se perfeitamente neste campo ao tentar retratar um sentimento de nulidade por parte dos imigrantes ilegais em Nova York, esbarrando em um descontrole da direção que reveste todo o filme em um invólucro estilizado que contrasta imensamente com a situação ali desenhada.
O filme acompanha dois irmãos gêmeos peruanos que vivem com a mãe na metrópole dos EUA e que, em meio à vida marginalizada e aos trabalhos diários, buscam alguma maneira de se tornarem menos “invisíveis” entre a multidão internacional que compõe a população da cidade. Através dessa perspectiva, seguimos sua jornada perante duas temáticas muito evidentes que o filme trabalha sobre para retratar sua condição: o amor e a linguagem.
Desde o início, é visível a tentativa de retratar essa situação através de uma metáfora da invisibilidade. E, de certa maneira, esta é uma das grandes problemáticas do filme: a evidenciação do discurso de uma forma que não trabalha em vias da construção eficiente da linguagem. Não há, por exemplo, um movimento dialético de organizar os elementos cênicos em função de um grande clímax ou, já que este exemplo não é de jeito algum uma regra, o esforço mínimo de entender as tensões suscitadas pela narrativa na linguagem cinematográfica. Do contrário, tudo é evidenciado, é discutido de maneira tosca e sem propósito maior do que servir a um amontoado de cenas que tentam, em uma bagunça mal amarrada, formar uma linha narrativa decente. Ao invés de trabalhar com as consequências, o filme se faz puramente consequências que não dialogam entre si.
Neste âmbito, os dois elementos já ditos formam o núcleo central da discussão. O “amor” – com muitas aspas – surge como a resposta possível de retirar aquela condição de invisibilidade dos personagens. Assim, eles criam uma ligação com uma terceira estrangeira para tentar, em um estilo pobre de coming-of-age, de alguma forma se evidenciarem, surgirem como sujeitos. Porém isso fica tão dependente de verbalizações durante a narrativa que não surge como um sólido elemento de encenação. A invisibilidade dos irmãos é desenhada de maneira não apenas genérica, mas vazia por conta de uma falta de consciência do filme pela própria condição dos garotos. Assim, atrocidades extremamente desnecessárias como uma cena de sexo mais para o final são realizadas. E quando a obra tenta ir em direção crítica a essa própria situação, torna-se banal, rasa.
Isso tudo, é claro, porque o longa inteiro é vítima de sua própria formulação. Através de uma música indie mal encaixada, o retrato da condição de imigrantes dos irmãos soa mais de uma maneira romantizada do que crítica em si. Diferentemente de obras como Amor, Drogas e Nova York, dos irmãos Safdie, a situação esculpida na obra surge mais como um pano de fundo para qualquer tentativa pobremente articulada do que como centro de uma crítica que, no final, está apontada para esse objeto inexistente. Enquanto, por exemplo, no filme dos Safdie, a condição de invisibilidade se encontra a todo o momento na mise-en-scène – seja com o apagamento dos indivíduos em meio à multidão, seja com sua própria condição corporal deteriorada -, aqui ela é estilizada, criando um glamour impotente, uma espécie de anomalia justificada por um “amor” que não possui fundamentos e uma tentativa de se sedimentar na linguagem, que felizmente se sai um pouco melhor.
A problemática da língua é revisitada constantemente ao longo do filme, atravessando toda sua extensão e compondo o corpo válido de sua crítica. No mundo opressor do trabalho precarizado, na intimidade das relações frágeis com as pessoas, a língua surge como elemento de tensão e resolução em meio à própria condição apagada de imigrantes. É ela que, inclusive, reverbera na tentativa dos irmãos de se colocarem como sujeitos, tendo em vista seu ávido esforço de constantemente falar inglês na frente até da mãe. Assim como é a escola de línguas que conecta ambos os personagens com a terceira estrangeira que fundamentará o trio.
Porém não é o suficiente para justificar um filme extremamente mal montado, mal encenado e sem coragem para ousar traduzir em imagens aquilo que almeja como discurso. A Santa do Impossível surge em um terreno delicado como uma obra cuja tentativa não chega nem a ser visível pela falta de manejo da direção e mesmo de sua escrita. Infelizmente, adentra a categoria citada anteriormente, o que não é, de maneira alguma, um ponto positivo.
A Santa do Impossível (The Saint of the Impossible) – Suíça, 2020
Direção: Marc Raymond Wilkins
Roteiro: Lani-Rain Feltham, Marc Raymond Wilkins
Elenco: Brian Dole, Magaly Solier, Pascal Yen-Pfister, Qurrat Ann Kadwani, Ratnesh Dubey, Tara Thaller, Bethany Kay, Alan Rowe Kelly, Carlos Valentino, Carla Carvalho, Vincent Chan, Craig Thomas Rivela
Duração: 97 min.