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Crítica | A Rotina Tem Seu Encanto

por Ritter Fan
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Yasujiro Ozu faleceu em razão de câncer na garganta em 12 de dezembro de 1963, dia em que completava 60 anos. Seu último filme foi lançado no ano anterior e a produção foi maculada pela morte de sua mãe, com quem sempre vivera, fazendo com que A Rotina Tem Seu Encanto seja um belíssimo, mas acridoce retrato da idade avançada, solidão e da função da família. Também merece nota que seu último filme coloque Chishū Ryū novamente como protagonista, já que o ator trabalhou em nada menos do que 52 das 54 obras do cineasta (nem todas sobreviveram, porém), em uma parceria quase sem paralelo no mundo do Cinema.

Como pano de fundo, temos mais uma vez uma história de casamento arranjado, um dos temas mais comumente utilizados pelo diretor, com especial destaque para Flor do Equinócio, seu primeiro filme colorido, e Dia de Outono, uma espécie de “refilmagem” do anterior. No entanto, é importante saber diferenciar essas obras, já que A Rotina Tem Seu Encanto – que até poderia ser visto como o terceiro de uma trilogia que tem esses outros dois como irmãos distantes – não tem no casamento seu foco, mas sim, apenas, seu catalisador. É a partir do momento em que Shūhei Hirayama (Chishū Ryū), pai já de certa idade, percebe que Michiko (Shima Iwashita), sua filha de 24 anos, talvez esteja sacrificando seu futuro para cuidar dele, que o protagonista começa a não só perceber que precisá-la “soltá-la” para o mundo, como também o quanto ele já está idoso. O sentimento é, lógico, conflitante. Sem a filha, Hirayama perde sua companhia, apesar de ter ainda outro filho vivendo sobre seu teto, além de um casado. Na cultura patriarcal japonesa dos anos 60, a mulher é essencialmente do lar, já que vive sua vida primeiro para seus pais e, depois, para seu marido, mas esse não é o ponto que Ozu deseja discutir. Como disse, o casamento ou melhor, a possibilidade de casamento, é, apenas, o mecanismo utilizado para sacudir o status quo e permitir a contemplação da finitude, da velhice, da solidão e, sim, também da felicidade.

De tempos em tempos, Hirayama tem reuniões com seus antigos colegas de escola, momentos relaxados em que eles brincam uns com os outros e que o roteiro co-escrito por Ozu com Kôgo Noda, outro colaborador seu de longa data, converte em tiradas cômicas que de forma bem-vinda quebram um pouco a pegada pensativa da obra. Chega até a ser surpreendente que uma das piadas recorrentes seja o segundo casamento de um de seus amigos (Horie, vivido por Ryūji Kita) , desta vez com uma mulher bem mais nova que ele, levantando suspeitas de que ele anda usando pílulas para amplificar sua virilidade. Em uma dessas reuniões, porém, Sakuma (Eijirō Tōno), envelhecido e empobrecido professor de literatura deles, aceita o convite para jantar e, durante a cerimônia, Hirayama descobre que ele ainda vive com sua filha Tomoko (Haruko Sugimura) que há muito “passou da idade” para casar, revelando-lhe um possível futuro indesejável para sua própria filha Michiko.

É como se Hirayama acordasse de um torpor. O torpor causado pela comodidade, pela rotina, pelo uso repetido do caminho mais viajado. Sua vida é confortável em casa, com sua filha constantemente dando-lhe atenção, como o preparo do jantar, o aquecimento da água do banho e a lavagem de suas roupas. Mas ele percebe que isso é ele sendo pequeno, mesquinho e não pensando no futuro que está roubado de Michiko. Claro que estamos falando de uma obra de Ozu e isso não vem com realizações expositivas nem com reações exageradas. Muito ao contrário, Chishū Ryū é um caldeirão de emoções que, porém, ele sabe como ninguém esconder, revelando aqui e ali, discretamente, com olhares, com flexão de voz e com o uso de um artifício narrativo importante para Ozu: a bebida. O sake e a cerveja são quase onipresentes na filmografia do diretor, que foi sempre pessoalmente muito afeito ao álcool e, em A Rotina Tem Seu Encanto isso é particularmente relevante já que o protagonista efetiva, mas discretamente, foge para a garrafa de maneira a afogar o que percebe de sua vida. Acontece que, assim como o casamento arranjado não é tema do filme, o alcoolismo também não o é. Ele é apresentado como parte da vida, com parte de comemorações, como mais um elemento que compõe o cenário, ainda que Noda e Ozu façam questão de inserir algumas linhas de diálogo para Michiko sobre isso toda vez que o pai chega bêbado à noite.

O que Ozu quer que realmente vejamos é o macro. É a vida generosa que Hirayama viveu e ainda vive, algo evidenciado por seus pequenos atos e pela preparação para o sacrifício maior: soltar as amarras de sua filha, desvencilhando-a dos grilhões que a prende a ele. Parece ser algo óbvio, mas não é, especialmente na já mencionada estrutura da família japonesa da década de 60. O cineasta quer que olhemos para o que conseguimos e o que não conseguimos na vida, quer que percebamos o que de positivo fizemos e deixamos como legado.

A Rotina Tem Seu Encanto fecha poeticamente a sensacional carreira de Yasujiro Ozu. Vemos um diretor completo deixando para trás um conjunto de obras que aponta para o lado bom da vida com vigor, mesmo em situações adversas. É um olhar positivo em meio a tanto horror que volta e meia precisamos para novamente achar equilíbrio e forças.

A Rotina Tem Seu Encanto (Sanma no aji – Japão, 1962)
Direção: Yasujirô Ozu
Roteiro: Kôgo Noda, Yasujirô Ozu
Elenco: Chishū Ryū, Shima Iwashita, Keiji Sada, Mariko Okada, Teruo Yoshida, Noriko Maki, Shin’ichirō Mikami, Nobuo Nakamura, Kuniko Miyake, Eijirō Tōno, Haruko Sugimura, Kyōko Kishida, Ryūji Kita, Michiyo Kan, Daisuke Katō, Tsūzai Sugawara, Masao Oda
Duração: 113 min.

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