Baseado no livro A Pianista, da premiada Elfriede Jelinek, a trama nos torna cúmplices de Erica Kohut (Isabelle Huppert), uma professora maquiavélica de piano que tiraniza e sabota seus alunos, sempre com intenções completamente indecifráveis. Entre o conturbadíssimo relacionamento com sua mãe, aulas particulares, concertos discretos e passeios de voyeur, ela conhece Walter Klemer (Benoît Magimel), rapaz charmoso e simpático que é tomado por uma atração obsessiva inexplicável pela pianista, levando-o a trilhar caminhos questionáveis para se aproximar dela.
A direção e o roteiro são do alemão Michael Haneke, ele é o responsável, entre outras coisas, por Violência Gratuita, O Vídeo de Benny, Caché, A Fita Branca… Ele é sensacional! Desde a mise-en-scène alva e chapada até os enquadramentos formais, simétricos e sofisticados nos quais ele coloca sua protagonista, a composição é extremamente cuidadosa. A interação dos personagens com a câmera, em geral, também é muito boa; existem diálogos em que o único personagem em cena fica de costas para a tela – recurso que, apesar de ser muito utilizado, jamais fica de abordagem monotemática. A sequência de abertura é muito bem pensada, além do caráter notoriamente sinóptico, algumas escolhas de enquadramento, quando usadas posteriormente, dizem muito para um espectador atento. O trabalho dele também é muito competente em manusear os diferentes estágios de suas personagens, o que fez muita diferença no arco da protagonista. Fica aquele gostinho de que ela “provou do próprio veneno” e isso é graças à boa abordagem cinegráfica dela e da sua jornada infame.
Outra coisa que ele faz muito bem é desenvolver o relacionamento da Erica e do Walter, e como isso era tão essencial, a atração dos dois torna-se palpável. Uma disputa de controle é notável entre os dois: por hora a câmera enquadra um deles de cima para baixo, fazendo o contrário com o outro; em outros momentos, contudo, eles aparecem no mesmo nível, denotando uma igualdade sórdida e intragável. Isso tudo é sempre muito alinhado com a intensidade da cena e dos diálogos: é um trabalho irretocável.
Colocar toda a carga disso no diretor, porém, seria um erro, afinal, as interpretações são um estupor. Benoît Magimel é perfeito em apresentar-se primeiro como um rapazinho gentil e afável, com uma obsessão inexplicável por uma megera (o que sutilmente diz que há algo de errado com ele). Mas também é perfeito ao se transformar por completo! A cena do banheiro tem uma passagem específica que exige bastante de seu talento, já que destoa muito da forma como ele se comportou até ali; é uma espécie de ponto de virada: assusta, e se fosse mal interpretado com certeza me tiraria do filme, mas é uma estranheza que diz muito sobre quais caminhos Walter vai trilhar a partir dali. É um baque importante do diretor no público, além de ser brilhantemente executada no âmbito cênico pelo ator.
Contudo, a “estrela” do show é Isabelle Huppert: o trabalho que ela faz é um fenômeno. O seu manuseio de voz causa amedrontamento: ainda que muitas das vezes nem estejamos olhando para ela, é improvável não simpatizar pela cautela que as pessoas se comportam a sua volta. A sua interação com os alunos também é muito boa, à medida que ajuda a antecipar bastante coisa: ela é frígida, intratável, metódica, muito exigente e insensível. Haneke deixa, frequentemente, que o rosto dela tome a tela inteira, e apesar de esse recurso ficar – por uma ou duas cenas – repetitivo, isso jamais é responsabilidade da atriz, porque ela entrega todas as vezes. Seu olhar incomoda e intimida, é uma maldade inata. O controle facial dessa atriz é inacreditável: Erika tem uma casca grossa entre ela e suas emoções, e essa barreira é quase sinestesicamente perceptível. Quando a personagem deve mostrar sua vulnerabilidade, ela entrega igualmente, todo o seu lado de histérica freudiana fica assustadoramente à mostra.
A música do filme também é muito bem utilizada. É um contraste poderoso entre a polidez da erudição em Schubert com as atitudes da protagonista; as cenas mais incisivas nesse sentido são as montagens em que interpelam-se apresentações musicais de Erika e suas aventuras voyeuristas. O filme, porém, estabelece de tal forma a importância da música na primeira metade que é difícil não sentir falta da sua presença no restante da exibição; a mim incomodou um bocado.
No entanto, independente de diminutos deslizes, A Professora de Piano é um drama antitético, masoquista e perturbador.
A Professora de Piano (La Pianiste) – França , 2001.
Direção: Michael Haneke.
Roteiro: Michael Haneke.
Elenco: Isabelle Huppert, Benoît Magimel, Annie Girardot, Susanne Lothar, Anne Sigalevitch e Udo Samel.
Duração: 131 min.