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Crítica | A Primeira Noite de Tranquilidade

por César Barzine
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Melancólico do começo ao fim, A Primeira Noite de Tranquilidade é um filme que não tem medo de manifestar ininterruptamente a decadência de seus personagens. Passando do vazio até a tragédia final – um desfecho bem semelhante ao de O Desprezo -, Zurlini apresenta uma história fatalista, porém de um modo inverso ao que se faz presente na ficção: a fatalidade não está na tragédia, nem em algo abrupto ou grandioso; ela se encontra no cotidiano, no curso natural do dia a dia, permeado pela mistura de desejos e o silêncio. Os personagens se dilaceram psicologicamente através de um processo minucioso, pois é na inexpressividade do rosto de Vanina e na postura grosseira de Daniele que habita a tragédia de suas vidas.

Durante boa parte do filme, Vanina busca um distanciamento de Daniele; ela, uma estudante desencantada pelo mundo, e ele, seu professor do ensino médio, um outro perdido na vida, que parte para a persuasão em cima da jovem. E mesmo com a postura de negação dela diante dos flertes de Daniele, os dois acabam sendo duas peças que se completam, pois a personalidade difícil e seca de ambos clama por essa junção. É no vazio de cada um deles que os dois buscam se preencher.  Vanina é uma mulher completamente misteriosa e que namora um sujeito rico, seu encanto está justamente nessa falta de encanto, no rosto pasmo que carrega, em suas poucas palavras e na falta de conexão com qualquer sentimento. A apatia acaba sendo a chave para esse perplexo relacionamento.

E é isso que faz com que A Primeira Noite de Tranquilidade seja um filme extremamente humano. O roteiro e as atuações partem da despersonalização como elemento central para a execução de uma obra íntima e densa. A inexpressividade de Daniele e Vanina é tão elevada que produz no espectador, por um efeito hiperbólico, a identificação para com eles. Inexpressivo é também a presença de Daniele em certos lugares. Nas baladas e festas ele se mantém contido ao lado dos mais jovens e alegres. A razão dele estar nesses ambientes, mesmo não se divertindo, é clara: contemplar e se aproximar de sua bela amada. Daniele é de outro mundo – ou nenhum mundo -, não se encaixa naquele espaço e nem pertence a aquela geração. Trata-se de um homem pela metade: meio intelectual, meio poeta e meio infeliz. Vanina torna-se, então, o alvo que Daniele busca alcançar como desígnio intelectual e artístico.

Assim, a paixão atinge um plano metafísico. Não transcendental, mas como se o amor fosse uma finalidade intrínseca à existência de Daniele. A posição de Vanina como destino final na vida de uma outra pessoa faz dela um segredo, uma incógnita cada vez mais obscura. O fato de não sabermos nada dela e toda a frieza que sua persona carrega reafirmam o valor que Daniele possui pela jovem – uma espécie de tesouro secreto. Mas essa mística vai além: não seria Vanina uma semideusa ou uma entidade diabólica? A beleza e o mistério da jovem, sempre carregada por uma sutil provocação, causam a impressão de estarmos diante de, ao mesmo tempo, uma criatura sublime e maligna. 

O título do filme é parafraseado em um diálogo: a noite de tranquilidade é a morte, e a razão dela ser tranquila é a ausência de sonhos. A visão pessimista da vida é totalmente explícita, direcionando Daniele ao posto daquele que deseja, ou seja, que sonha e faz de sua vida uma noite infeliz. A obra de Zurlini entra numa abordagem à lá Schopenhauer, pois além do pessimismo imanente, o desejo é tomado como fenômeno propício à náusea existencial; onde o ter possui menos valor que o desejar. A paixão torna-se um peso, pois aquele que é amado existe apenas na mente do amante; é ele uma projeção do mero desejo. Ainda seguindo a linha de pensamento do filósofo alemão, o ser humano é um animal degradante, irracional e instintivo. O que significa que o amor é só mais um impulso decorrente dessa natureza caótica. Por isso que, entre Daniele e o ex-namorado de Vanina, há um embate, pois este segundo também está agarrado ao desejo bruto e agressivo que é revelado.

Vanina não é a única mulher com que Daniele mantém alguma conexão amorosa; ele vai para cama com Monica, que se apega por ele, cobrando, em seguida, por mais atenção de sua parte. E depois de alguns momentos de uma grosseira rejeição, ele volta para cama com ela. Na cena Daniele é ainda mais ríspido: transa em silêncio, sem se importar com ela. O contato afetivo com uma segunda mulher e o ato sexual seco e insensível atestam a personalidade de Daniele além do amante melancólico. Ele é amoral, antipático e rude. E mesmo assim torcemos a cada minuto por ele. Isso porque a sua tristeza é algo universal; onipresente em cada instante de sua existência e para cada espectador que a acompanha. A angústia é nada menos do que inerente ao seu ser, à sua vida por completa, e não a um momento ou situação específica dela. O roteiro busca colocar o desejo, a paixão e o sexo não como elementos que combatem ou aliviam a tristeza, mas que simplesmente fazem parte dela.

A Primeira Noite de Tranquilidade (La Prima Notte Di Quiete) – Itália, França, 1972
Direção: Valerio Zurlini
Roteiro: Enrico Medioli, Valerio Zurlini
Elenco: Alain Delon, Sonia Petrovna, Lea Massari, Giancarlo Giannini, Renato Salvatori, Nicoletta Rizzi, Adalberto Maria Merli, Patrizia Adiutori, Salvo Randone, Alida Valli, Sandro Moretti, Krista Nell, Olga Bisera, Fabrizio Moroni, Liana Del Balzo
Duração: 90 minutos.

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