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Crítica | A Primeira Cruzada: Um Chamado Para o Oriente, de Peter Frankopan

Partindo de fontes orientais.

por Luiz Santiago
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Um Chamado Para o Oriente foi o primeiro livro escrito por Peter Frankopan, historiador britânico, professor no Worcester College (Universidade de Oxford) e diretor do Centro de Estudos Bizantinos na mesma instituição. Sua proposta com este livro é apresentar, no sentido positivo do termo, uma “revisão histórica” a respeito do evento que marcou para sempre a Europa medieval, dadas as suas consequências a longo prazo. Escancarando os fatores essencialmente políticos da marcha de ocupação tanto para o Papa Urbano II, que estava em crise, lutando contra o antipapa Clemente III (apoiado por Henrique IV, do Sacro Imperador Romano-Germânico), quanto para o então líder do Império Bizantino, o autor traz à luz a visão de diversas fontes produzidas no Oriente, distanciando-se consideravelmente da produção eurocentrista que dominou a historiografia sobre o evento.

A obra começa com um apanhado cronista relativamente simples, pouco profundo, mas amplo em demarcação de cenários, personagens, situações, datas e condições a serem expandidas nos 12 capítulos seguintes. Isso prepara o leitor para o contato com a tese defendida no livro. Para Frankopan, a Primeira Cruzada (1906 – 1099), ocorrida na região do Levante e da Anatólia, não possui suas raízes no Ocidente e nem foi construída ou estruturada em suas maiores motivações a partir da Europa Ocidental, com o Concílio de Clermont (1095). Na tese aqui provada, as chaves para se compreender o real processo de fermentação do que viria a ser essa Cruzada estavam no Império Bizantino, e é para lá que voltamos o olhar, partindo de relatos diversos da região e adicionando perspectivas por muito tempo ignoradas ou não desmistificadas.

Colocados os atores históricos em seus devidos lugares, o texto versa sobre a organização da igreja cristã dos dois hemisférios (a católica romana e a católica ortodoxa), passando por linhas de sucessão, divergências papais e questões doutrinárias — como o filioque –; e também agitações sociais e políticas, a exemplo do contato e desavenças das lideranças religiosas com alguns reis e imperadores. Observamos nuances da tese do autor na primeira análise governamental de Aleixo Comneno, Imperador e Autocrata dos Romanos, que governou o Império Bizantino de 1081 a 1118; e na exploração profunda e crítica do documento produzido por uma das primeiras mulheres historiadoras, Ana Comnena, filha de Aleixo. Este documento é uma das mais importantes fontes orientais sobre esta cruzada, mas — como qualquer outro documento histórico — não pode ser lido com inocente aceitação, como fizeram os historiadores ao longo dos séculos, levando a problemáticas afirmações.

O documento chama-se A Alexíada, e foi escrito cerca de 50 anos após a Primeira Cruzada. O volume é composto de um Prólogo seguido de 15 livros, onde a autora fala da situação do reino de seu pai, desde a formação da dinastia Comnena (uma tomada golpista que, nas páginas da Alexíada, é tratada como ação heroica e divina), até análises militares como a Guerra contra os Normandos, a Guerra contra os Citas e a Operações contra Tzacas e Dálmatas, tudo isso antes da Primeira Cruzada, que a autora também analisa, estendendo os eventos até o ano de 1104. Este é o primeiro de muitos documentos/versões históricas da Ásia Menor e Levante que ganha espaço em Um Chamado Para o Oriente, mesmo com diversas críticas, ressalvas, adendos e provas em contrário do autor à confusão na cronologia, manipulação, exageros ou ocultações dos eventos narrados por Ana Comnena.

Faz-se um ótimo trabalho de conceitualização no desenvolvimento da Primeira Cruzada com uma escrita séria, acessível, e uma quantidade compreensível e bem específica de fontes adicionais na bibliografia. Cada capítulo analisa aspectos marcantes em andamento na Europa e na Ásia, partindo de um microcosmo (como uma interessantíssima exposição geográfica, social e cultural da cidade de Constantinopla, por exemplo) e desaguando em um macrocosmo que nos permite compreender o teatro de guerra e suas rápidas transformações. Isso vale tanto para localidades, a exemplo da capital do Império e seus impasses com Pechenegues e Normandos; quanto para indivíduos, das já citadas lideranças políticas às inúmeras presenças militares que surgiram e desapareceram de cena à medida que a campanha contra os “pagãos” tomou fôlego. Há uma ótima exploração sobre o antissemitismo no bojo da marcha e das atrocidades que os “homens seguindo os santos desígnios de Deus” fizeram com pessoas de todas as idades em Niceia, Antioquia e, principalmente, Jerusalém.

O véu religioso que cobria a Primeira Cruzada era muito fino. O evento foi verdadeiramente motivado por questões políticas e ambição pelo poder, partindo do desespero de Aleixo, que vinha enfrentando sérios problemas no Império Bizantino desde os primeiros anos da década de 1090; seguindo com o desespero do Papa Urbano II com sua própria relevância e com a parte da igreja que lhe era fiel. A tese do autor não é apenas provada historicamente. Ela também recebe uma ampla ligação socioeconômica, entrando na análise os indivíduos influentes em reinos da Europa e da Ásia, movidos para a luta contra os turcos (seljúcidas) e para a “libertação do Santo Sepulcro“. A descrição da tomada de Jerusalém com base em cartas, relatos pessoais, poemas e cantigas da época são estonteantes e, com elas, o autor encerra a sua melhor parte do livro, concluindo o caminho imediatamente após as conquistas. Somam-se aí também as intensas movimentações dos comandantes para arranjarem meios diplomáticos e viáveis de manter as terras conquistadas — os Estados Cruzados, criados na esteira das conquistas, a saber, Condado de Edessa, Principado de Antioquia, Reino Latino de Jerusalém e Condado de Trípoli — e a intensa movimentação comercial da região, com todos os seus complexos acordos e condições de negociação.

Tenho pouca simpatia para com o derradeiro capítulo, quando o autor coloca em cena as consequências a médio prazo da Primeira Cruzada. Curiosamente, é o capítulo mais superficial do livro. Evidente que o número de implicações imediatas não demandam tanto espaço, pesquisa ou detalhes como outros contextos do volume, mas o autor passa muito tempo falando do destino familiar de certos comandantes e deixa de lado uma exploração mais sólida dos já citados Estados Cruzados e as mudanças na região do Levante. Peter Frankopan torna o seu Chamado Para o Oriente uma viagem cheia de boas surpresas, mesmo para historiadores. A presença das fontes orientais e a bem amarrada construção da importância de Aleixo Comneno para a Cruzada que transformou para sempre a Europa — e, a longo prazo, o mundo que se moldou a partir desse continente transformado — fazem do livro uma agradável, rica e necessária produção contemporânea sobre a “expedição dos príncipes“. Uma história de pouca fé, muito jogo de poder, sangue, lucro e traições.

A Primeira Cruzada: Um Chamado Para o Oriente (The First Crusade: The Call from the East) — Reino Unido, 2012
Autor: Peter Frankopan
Editora original: Belknap Press
No Brasil: Editora Crítica (2022)
Tradução: Renato Marques
438 páginas (edição para kindle)

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