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Crítica | A Ponte do Rio Kwai

por Ritter Fan
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O que foi que eu fiz?
– Tenente-Coronel Nicholson

Graças ao gosto cinematográfico eclético de meu pai e seu hábito de me contar histórias de ninar baseadas em livros e filmes que ele gostava, a primeira música “complexa” que aprendi a assobiar foi Colonel Bogey March, composta em 1914 pelo tenente britânico F. J. Ricketts que usava o nom de plume  Kenneth J. Alford e que se tornaria mundialmente reconhecida por seu icônico uso em A Ponte do Rio Kwai, obra dirigida pelo grande David Lean e lançada, com enorme sucesso, em 1957. Assobiava alegremente a marchinha militar sempre que andava até a escola ou curso de inglês muito antes de saber seu nome e também de sequer assistir ao filme, algo que só chegaria a fazer – a contragosto e só porque meu pai era insistente pacas – já no final da adolescência quando tudo que eu não queria assistir era filmes “velhos”.

Mas a história de A Ponte do Rio Kwai, que parece, em uma primeira análise, extremamente específica e com todo jeitão de “baseada em fatos reais” é, na verdade, universal e lida sobre paixão que se torna obsessão e, por isso, completa e perigosa cegueira, com pitadas de patriotismo e obediência a todo custo. Baseada em romance de 1952 do francês Pierre Boulle, talvez mais conhecido como autor de O Planeta dos Macacos (falando em ecletismo…), e situada durante a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente em um campo japonês de prisioneiros de guerra em Burma, hoje Myanmar, no contexto da construção da linha férrea que seria conhecida como Ferrovia da Morte, a narrativa fictícia lida com um destacamento de soldados britânicos, comandado pelo orgulhoso tenente-coronel britânico Nicholson (Alec Guinness), que é obrigado a trabalhar na construção da ponte do título.

Diferente de outros filmes de campo de prisioneiros que proliferaram nas décadas seguintes ao fim da guerra, o foco do roteiro adaptado de Carl Foreman e Michael Wilson, que trabalharam em segredo por estarem na maldita lista negra de Hollywood, não tendo podido sequer receber o Oscar (Boulle recebeu no lugar deles, que foram reconhecidos apenas postumamente pela Academia), não é na abordagem macro, na história de soldados que tentam fugir de seus captores ou que tentam valorosamente resistir à brutalidade dos inimigos. Sim, há tudo isso no filme, mas o texto brilhantemente executado por Lean, diferente dos filmes que se notabilizaria a fazer nas décadas seguintes – mais especificamente os maravilhosos Lawrence da Arábia, Doutor Jivago e Passagem para a Índia – coloca as preocupações e discussões geopolíticas em segundo plano, trazendo para a frente das câmeras os dramas pessoais notadamente do já citado Nicholson, primeiro em oposição ao e depois ao lado do comandante do campo coronel Saito (Sessue Hayakawa).

A forma como a trama evolui é inusitada e muito bem construída, com praticamente um terço da duração da obra lidando com o estabelecimento das personalidades inamovíveis tanto de Saito quanto de Nicholson ao ponto de o maniqueísmo do mal e do bem que inevitavelmente procuramos em filmes de guerra desapareça por completo. De certa forma, reconheço a procedência dos comentários daqueles que reclamaram à época que Lean abrandou a dureza dos campos japoneses, mas é que o objetivo do diretor foi fazer com que as duas forças antitéticas se encontrassem “no meio”, algo que os trabalhos dramáticos de Hayakawa e Guinness alcançam sempre em um crescendo a ponto de parecer que estamos testemunhando uma metáfora sobre o interior de uma panela de pressão prestes a explodir. Guinness, com quem Lean odiou trabalhar, está absolutamente irritante como o britânico by the book que deixa seu orgulho e sua obsessão tomar conta de si em níveis que ultrapassam qualquer medida de sanidade, chegando a deixar o inicialmente violento personagem de Hayakawa parecendo um cachorro acuado.

Para amplificar esse embate de mentes endurecidas pela guerra, o roteiro faz o inteligente uso do comandante americano Shears, vivido da maneira mais bonachona possível (considerando a ambientação) por William Holden, que é o primeiro nome a aparecer nos créditos, diga-se de passagem. Holden lembra, aqui, o Hilts ‘The Cooler King’ de Steve McQueen, em Fugindo do Inferno, um homem prático e esperto, completamente pronto a dobrar – e quebrar – as regras que forem necessárias para se dar bem e viver o máximo de tempo possível na sombra e água fresca. A postura de Shears é tão contrastante à de Nicholson, que é impossível não ficar ainda mais incomodado pela forma como o tenente-coronel britânico lida com a construção da ponte, tornando-a o projeto de sua vida, por mais incongruente que isso seja não só para o espectador, como para todos ao seu redor.

Filmado em locação no Ceilão, hoje Sri Lanka, Lean esmera-se no realismo das circunstâncias complicadas de calor e umidade extremos, com chuvas diárias, algo que a direção de arte de Donald M. Ashton e os figurinos de John Wilson-Apperson amplificam ao máximo com uma evolução muito cuidadosa de todo o cenário e vestimentas puídas que os soldados prisioneiros usam e que, mais uma vez, é contrastado pela narrativa paralela de Shears a partir de sua fuga. Igualmente, a fotografia de Jack Hildyard esmera-se no contraste gritante entre a vegetação rica e muito verde ao redor e os trabalhos forçados que são o centro da fita, mesmo que o abrandamento dos castigos ao ponto de eles serem até mesmo esquecidos por vezes crie uma indevida impressão de narrativa descompromissada na linha do que convencionamos chamar de Sessão da Tarde, algo que está muito longe de ser o objetivo da produção.

Diria até mesmo que Lean se perdeu um pouco na forma como ele lida com o arco de Shears. Quando o personagem finalmente sai do campo e chega à civilização, sua função de contraste de Nicholson desaparece por completo, só retornando ao final e, nesse meio tempo, há um desfoque e uma incerteza sobre o que fazer com o americano. Holden, que sempre viveu durões nas telonas, aqui tenta se adaptar a um personagem acovardado demais que não exatamente combina com o ator. Mas, mais do que isso, Lean emprega tempo demais para essa sidequest, demorando a levar as histórias à necessária convergência. É como se fosse um filme-dentro-de-um-filme que não exatamente funciona para além de acrescentar tempo de duração avantajado para a obra. Mas isso somente até a convergência, pois, quando isso finalmente ocorre, Lean mostra-se um mestre absoluto em criar tensão com pequenos detalhes como uma brilhante arquitetura sonora que usa o som de passos ecoando na madeira da ponte para estabelecer suspense, além de dar espaço para Guinness para entregar os momentos definitivos de seu belíssimo personagem.

Não tenham dúvida: escrevi a presente crítica assobiando Colonel Bogey March a todo vapor e com o mesmo vigor do batalhão de Nicholson. Mas A Ponte do Rio Kwai não é apenas uma inesquecível música utilizada em dois momentos que trazem sorrisos ao rosto de qualquer um, e sim, também, um lindo – e igualmente terrível – tratado sobre a paixão sem limites transformada em obsessão desregrada.

A Ponte do Rio Kwai (The Bridge on the River Kwai, EUA/Reino Unido – 1957)
Direção: David Lean
Roteiro: Carl Foreman, Michael Wilson (baseado em romance de Pierre Boulle)
Elenco:  William Holden, Alec Guinness, Jack Hawkins, Sessue Hayakawa, James Donald, Geoffrey Horne, André Morell, Peter Williams, John Boxer, Percy Herbert, Harold Goodwin, Ann Sears, Henry Okawa, K. Katsumoto, M.R.B. Chakrabandhu
Duração: 161 min.

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