Quando meu colega Ritter Fan me sugeriu assistir A Pequena Loja dos Horrores, eu não tinha a menor ideia de onde estava entrando. Eu sabia que era um musical dos anos 80, protagonizado por Rick Moranis, então provavelmente era uma comédia. Mas eu definitivamente não sabia que era um rock musical de horror cômico sobre uma planta carnívora falante. O nível de criatividade do filme, seja musicalmente, narrativamente e visualmente é, assim como a premissa da obra, um total absurdo. E eu só pude ficar encantado.
E grande parte dessa fascinação ocorre por causa da fantástica trilha sonora do longa, tema desta crítica. A obra em questão é baseada em uma versão musical off-Broadway escrita por Howard Ashman, com composições de Alan Menken, que por sua vez se inspiraram em um filme B dos anos 1960. No entanto, a autoria da trilha em si para a adaptação de Frank Oz é de Miles Goodman, que assumiu a tarefa após Menken e Ashman não terem envolvimento direto na trilha sonora por estarem comprometidos com outros projetos na época. Goodman fez várias mudanças, modificando alguns arranjos, inserindo partituras orquestrais próprias, diminuindo o tamanho de algumas canções e cortando músicas inteiras do musical para a trilha, mas, honestamente, escutando os dois trabalhos, é notável como o material original, ainda que não completamente intacto, não difere de maneira drástica do corte final de Goodman.
A trilha começa com um prólogo narrado por Bill Mitchell, contando-nos sobre uma grande ameaça para a raça humana que surgiu em um local inesperado, a nossa pequena floricultura batizada de loja dos horrores. A melodia teatral tem uma facilidade enorme em nos colocar musicalmente em um palco imaginário, iniciando com um rufar de bateria (e a própria intro de Mitchell) que passam uma dimensão de espetáculo. Mas também existe um aspecto extremamente irônico nessa abertura, seja na narração meio debochada de Mitchell ou na própria melodia alegre da música em contradição com a letra “sombria” do pequeno conto de horror da história. E isso dita o tom do restante da obra, que está contando uma história tenebrosa sobre um monstro matando pessoas, ao mesmo tempo que é acompanhada por sinfonia animada, nessa canção ditada por uma percussão enfática e um piano super acelerado, além de ótimas inserções de trompete e saxofone, e, claro, o coro de Tichina Arnold, Michelle Weeks e Tisha Campbell que se destacam com muito entusiasmo vocal e batidas de palmas típicas de Motown.
A mesma ironia pode ser vista com ainda mais força na canção seguinte, Skid Row (Downtown), que começa com um solo poderoso digno de um R&B/Soul, mas que contém uma letra sobre rotina, pobreza, marginalidade, desigualdade econômica e relacionamentos abusivos. A melodia inicial da canção é similar ao prólogo, mas a segunda metade da música nos apresenta Seymour, interpretado por Moranis, e podemos ver o arranjo circulando um hard rock com uma guitarra mais enfática misturado com a harmonia doo-wop, com o trio vocal inicial e uma batida simples. Moranis não é seu típico vocalista impressivo, mas sua voz tem um tom meio pateta que exprime perfeitamente a personalidade de Seymour e funciona como um estranho eu-lírico para contar a narrativa musical surreal.
Aliás, essa qualidade de Moranis se apresenta na canção seguinte, Da-Doo, em uma abordagem de diálogo extremamente cômica na narração de como ele encontrou a planta falante na mesa de um homem chinês velho após um estranho eclipse – a harmonia aqui bebe ainda mais do doo-wop, com uma linha melódica simples com pouca instrumentação e o coro de fundo. O mesmo vale para Grow for Me, em que Seymour literalmente está conversando com sua planta, Audrey II, e no final decide oferecer seu sangue para o monstrinho – a partitura orquestral amplificando-se para passar a sensação de crescimento de Audrey II é um ótimo desfecho. Essas duas canções realmente demonstram a construção de uma narrativa quase visual com a música.
A canção seguinte, Somewhere That’s Green, assim como Suddenly, Seymour, são as músicas que mais destoam da proposta irônica da obra, se apoderando de grande força emocional, até trágica com o background de abuso doméstico de Audrey, mas também com uma pegada romântica que se aproveita da voz graciosa de Ellen Greene. Menken traz um lirismo apaixonado para as melodias nas teclas suaves de piano e na percussão lenta, quase inteiramente focada no chimbal com pequenas viradas nas partes mais climáticas da canção, com Greene dominando completamente o desfecho de ambas as músicas, seja o fechamento sereno de Somewhere That’s Green ou o apogeu de Suddenly, Seymour, a música mais linda da trilha.
No entanto, a obra continua divertindo bastante, como em Some Fun Now, basicamente com o coro da trilha tirando sarro de Seymour, e Dentist, em que escutamos Steve Martin (aparentemente fazendo um pastiche vocal de Presley) cantando um rock’n’roll sobre usar sua profissão odontológica como desculpa para abusar de seus clientes. Essas canções vêm em seguida, o que eu não gosto tanto em termos estruturais, mas são simplesmente hilárias, quase esquetes cômicas, especialmente Martin que parece estar se divertindo horrores como um dentista sádico.
No entanto, quem realmente rouba a cena na trilha sonora é Levi Stubbs interpretando a planta carnívora Audrey II. Em Feed Me (Git It), como também Mean Green Mother from Outerspace, Menken produz canções que misturam hard rock com funk que combinam com a voz em barítono de Stubbs, além de contar com um ritmo eletrizante que dispõe de extrema química entre Stubbs e Moranis, e as melhores letras de Ashman com muita rimas e humor negro na insaciável fome do monstro. Mas dentre as músicas com Stubbs, é Suppertime que rouba o pódio, com um arranjo assustador em seus riffs de piano sinistro, coro quase fantasmagórico acompanhando o vocal poderoso de Stubbs e uma diminuição gradual do áudio em fade out digna dos melhores filmes de terror.
As canções envolvendo Audrey II também ressoam o principal tema de A Pequena Loja dos Horrores, que é sua alusão ao mito de Fausto e seu pacto com o demônio, emulada em diversas peças teatrais, inclusive esta, na qual nosso “herói” perde a amada por causa de um destino selado. Seymour vende seu corpo, sua alma e seu amor para manter o sucesso prometido por seu bichinho tenebroso. A trilha sonora constrói essa narrativa espetacularmente, com Ashman e Menken combinando a natureza sombria da história com rock alegre, piadas surreais e composições magistrais. A dupla gigantesca (e Goodman também) criaram um material que consegue emocionar, rir, refletir e especialmente encantar. Um verdadeiro espetáculo cheio de sarcasmo, ironia, paixão e muita qualidade musical.
Little Shop of Horrors: Original Motion Picture Soundtrack
Compositor: Miles Goodman, Alan Menken (músicas), Howard Ashman (letras)
Gravadora: Geffen Records
Ano: 1986
Estilo: Trilha Sonora
Duração: 38 min.