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Crítica | A Outra Face

Crise de identidade.

por Kevin Rick
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Mas lembre, toda vez que se olhar no espelho, você verá meu rosto.

– personagem de Nicolas Cage com o rosto do personagem de John Travolta

É fácil olhar para A Outra Face e classificar o filme como uma história ridícula cheia de ideias malucas, afinal, estamos falando de uma obra onde os dois personagens principais, o agente do FBI Sean Archer (John Travolta) e o terrorista Castor Troy (Nicolas Cage), literalmente trocam de rostos. Eu entendo o rótulo, de verdade. Mas acredito que o longa merece mais apreciação para além do “filme de ação com premissa absurda” dos anos 90, porque A Outra Face é muito mais profundo e perspicaz do que longas “apenas” divertidos e descerebrados como A Rocha Con Air – A Rota da Fuga (curiosamente, todos estrelados por Cage). Mas vamos segurar esse pensamento um pouco. Falarei primeiro do espetáculo cinematográfico.

O cineasta John Woo está à todo vapor no comando da produção, trazendo sua marca registrada de muita câmera lenta, mergulhos com duas armas, grandes acrobacias e planos ágeis. Sua direção é extremamente estilizada e hipercinética, mas também gosto de como Woo está mais contido e organizado em sua decupagem se comparado com seus filmes japoneses, também dispondo da composição bem ordenada da montagem que acompanha as coreografias com ótimo sentido geográfico e sensações estimulantes. O diretor também se aproveita do orçamento avantajado de Hollywood para incluir set-pieces extremamente criativas e descomunais, como um helicóptero perseguindo um avião ou o climático embate das lanchas, onde Woo tem total controle do caos. Há também cenários improváveis e imaginativos, como uma prisão de alta segurança onde os presos usam botas magnetizadas.

Cada excesso e cada exagero da direção é bem pensado para uma linguagem de entretenimento e diversão, e o mesmo vale para o roteiro e os arcos dos personagens. Em primeira instância, a troca de rostos funciona como um ótimo elemento subversivo em narrativas dessa ordem, dando um sabor diferente para seu típico jogo de gato e rato entre policial e criminoso. Esqueçam o absurdo da premissa, e pensem no seu efeito narrativo, de como inverte o papel dos personagens e brinda o espectador com cenários impensáveis para o bandido e o herói, de como cria situações torturantes e tensas como a do vilão beijando a mulher do qual assassinou o filho. É um thriller bem desesperador quando paramos para refletir os desdobramentos em tela e como Archer está preso por grande porção da história.

É nesse ponto que A Outra Face se torna um filme dramaticamente inteligente. A ciência é ridícula e a história não é complexa, mas certamente há profundidade. A transformação de Archer no seu arqui-inimigo é praticamente uma alegoria para seus sentimentos de obsessão e vingança, algo muito bem explorado na obra desde o assassinato de seu filho até a cena final de reconciliação familiar. No diálogo que citei acima, Troy diz a frase para Archer de forma literal, mas o rosto do vilão já vinha perseguindo ele há anos como um fantasma, dando à obra sua carga metafórica sobre espelhamentos e a rixa entre homens opostos, numa história essencialmente sobre luto, culpa e superação. Archer verdadeiramente derrota Troy quando vence seu remorso (a cena da cicatriz) e quando demonstra compaixão (criar o filho de Troy).

Para todo esse mosaico de ação espalhafatosa, melodramas e suspense, as atuações de Cage e Travolta são fundamentais, para bem ou para mal. Ambos os atores interpretam o antagonista de forma caricata, exagerada e com muitos olhares e expressões faciais bizarras (especialmente o histriônico do Cage), o que parcialmente funciona para o aspecto da vilania de 007 em drogas da história, mas que também traz uma ridicularidade cômica e constrangedora que não sei se é completamente intencional. São nas cenas dramáticas que as estrelas se saem melhor, na melancolia e na aflição de Archer, com destaque especial para Cage nos momentos mais desoladores do longa (e também nos mais absurdos, como o bloco dele acordando do coma sem rosto).

A Outra Face é um filme de ação especial. Existe uma cena emblemática para mim, quando os adversários atiram por trás de um espelho, momento que encapsula a narrativa visual de John Woo e a poesia frenética da obra em torno dos reflexos dramáticos da história sobre personagens totalmente opostos – até a curiosidade do sangue deles é indicativo de suas personalidades, com Archer sendo O negativo (doador universal) e Troy sendo AB positivo (recebedor universal). Entre o sacrifício e a psicopatia, testemunhamos um drama familiar que beira o terror, envolto por uma direção extremamente divertida em suas megalomanias coreográficas e espetáculo cinematográfico. Por trás dos tiros, explosões e seu conceito lunático, A Outra Face explora seus personagens e sua rivalidade, dando carga emocional e tensão para cada chumbo trocado.

A Outra Face (Face/Off) – EUA, 1997
Direção: John Woo
Roteiro: Mike Werb, Michael Colleary
Elenco: John Travolta, Nicolas Cage, Joan Allen, Gina Gershon, Alessandro Nivola, Colm Feore
Duração: 133 min.

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