Em 1985, quando andava de carro com meus pais ou avós, uma de minhas diversões era girar o botão para achar We Are the World tocando nas estações de rádio. Não só eu adorava a música, como era simplesmente impossível fazer uma viagem – curta ou longa – sem que a canção não estivesse tocando em algum lugar, no máximo com intervalos de poucos minutos. A onipresença dela era impressionante e creio que somente quem viveu a época pode efetivamente dizer como ela estava em todo lugar e como diversos cantores americanos foram quase que literalmente revelados para o mundo com o também onipresente videoclipe.
E é por isso que eu já aviso logo que qualquer eventual defeito que eu mencione sobre o documentário A Noite que Mudou o Pop, sobre os bastidores da composição de We Are the World e sua gravação, não afetou minha avaliação final. É simplesmente uma explosão de nostalgia e uma emoção indescritível ver tantos artistas incríveis – infelizmente muitos já falecidos -, vários deles verdadeiras lendas, juntos em um lugar só, fazendo o máximo para, como Quincy Jones pediu, deixar seus gigantescos egos na porta e gravar uma das música mais famosas da história recente com o nobre objetivo de ajudar na luta contra a fome na Etiópia.
Claro que todos os méritos devem ir para Bob Geldof e Midge Ure que, no ano anterior, iniciaram o movimento com a gravação de Do They Know It’s Christmas? pela super banda Band Aid e também para Harry Belafonte que, inspirado por Geldof e Ure, arregimentou o agente musical e produtor americano Ken Kragen, que, por sua vez, arregaçou as mangas para começar a reunir nomes importantes ao que viria a se tornar We Are the World, mas mesmo assim é impressionante lembrar dessa reunião de quase 50 astros da música americana em uma maratona de gravações (de áudio e vídeo) que aconteceu, por incrível que pareça, ao longo de 12 horas seguidas entre o fim do dia 28 de janeiro de 1985 e a manhã do dia seguinte. Foi uma tempestade perfeita que, de certa forma, aconteceu novamente – só que na forma de um megashow – nos dois lados do Oceano Atlântico, no Live Aid, no dia 13 de julho do mesmo ano. Sem relação com a causa, mas certamente reunindo uma quantidade sem precedentes de artistas, não podemos esquecer que, em janeiro de 1985, a primeira e até hoje a mais incrível edição do Rock in Rio aconteceu.
O documentário tem duração apertada para lidar com tantos nomes importantes, mas é admirável o esforço da produção para não esquecer de ninguém, nem mesmo de Dan Aykroyd (duvido que alguém se lembre de que ele estava lá…). Mas foco era necessário e a “linha guia” da narrativa é, merecidamente, Lionel Richie que foi um dos primeiros a juntar-se ao projeto e foi um dos compositores da canção, ao lado de Michael Jackson e que havia aceitado ser o apresentador do American Music Awards, evento que seria então usado para tornar possível a reunião de tantos nomes grandes ao mesmo tempo e em uma mesma cidade. São as memórias de Richie, entrevistado para o documentário, que servem de “roteiro” para o que vemos na tela e isso funciona muito bem, pois abre espaço não só para outras entrevistas dentre técnicos e outros nomes da música, notadamente Huey Lewis, Kenny Loggins e Sheila E., então ainda razoavelmente desconhecidos, mas também nomes já profundamente sedimentados como Bruce Springsteen e Dione Warwick, o que dá vida e ainda mais força à narrativa.
Mas talvez as maiores preciosidades do documentário sejam mesmo as imagens de bastidores. Vemos tanto gravações que ocorreram quando Richie e Jackson estavam compondo a música na mansão do segundo repleta de animais selvagens soltos por todos os lados, como a primeira gravação da música em forma de fita demo para ser distribuída aos demais participantes como uma forma de aclimatá-los e, também, de convencê-los a aparecer. Naturalmente, esses dois momentos, por mais importantes que tenham sido, ganham minutagem acanhada no filme, já que a produção, compreensivelmente, foca na grande noite em que todo mundo se junta em um estúdio só para gravar We Are the World e as cenas são realmente excepcionais, valendo especial destaque para o momento em que Al Jarreau puxa a icônica Day-O (The Banana Boat Song), de Belafonte, para homenagear o cantor que começara o projeto, com todos os demais seguindo no improviso, com direito até mesmo à alterações na letra. Claro que eu não choro nunca, mas, se eu chorasse, esse momento seria um dos vários em que eu choraria nesses 90 minutos de documentário…
Em linhas gerais, pela natureza celebratória do filme, é perfeitamente perceptível sua pegada essencialmente chapa branca, algo que, em outras circunstâncias, me faria virar o nariz. No entanto, mesmo com a tendência de só falar de bem de todos que participaram do projeto, há espaço para alguns momentos particularmente tensos que deixam entrever as diversas histórias que não são contadas aqui e que talvez mereçam um documentário próprio. Para começo de conversa, há a participação estranha de Stevie Wonder no início do projeto, recusando-se a retornar ligações de Lionel Richie e, de repente, aparecendo na gravação da fita demo, somente para, durante as gravações do dia 28 de janeiro, insistir que a letra fosse alterada para a inserção de frases em Swahili. Além disso, vemos Sheila E. afirmar com uma certa mágoa que a única razão de ela ter sido chamada foi para atrair Prince, tanto que seu em tese prometido momento solo jamais aconteceu quando Prince não apareceu (o artista depois doaria uma faixa para fazer parte do álbum). E, finalmente, há uma sequência que mostra Al Jarreau visivelmente alterado pelo efeito do álcool, algo que, confesso, achei até deselegante ter sido mostrado, pois não agrega nada e só detrai da memória do cantor e compositor.
Mas, como eu disse, defeitos em A Noite que Mudou o Pop são, pela presente crítica, completamente ignorados e esquecidos em prol de uma nostalgicamente merecida avaliação máxima que eu sabia que o documentário levaria já lá pela sua metade tamanho seu poder de invocar ninjas cortadores de cebola. Só que falando sério agora, sem querer (querendo?) irritar muita gente: o que aconteceu em janeiro de 1985 jamais aconteceria hoje em dia e, se acontecesse, não teria nunca o poder que teve naquela época, seja pelo inusitado da coisa, seja pelos talentos épicos, inimitáveis e insubstituíveis que foram reunidos naquele estúdio em Los Angeles. Pronto. Falei, acabei de escrever a crítica, publiquei e saí correndo…
A Noite que Mudou o Pop (The Greatest Night in Pop – EUA, 29 de janeiro de 2024)
Direção: Bao Nguyen
Com: Lionel Richie, Bruce Springsteen, Huey Lewis, Dione Warwick, Cyndi Lauper, Kim Carnes, Bob Dickinson, Tom Bähler, Humberto Gatica, Sheila E.
Duração: 96 min.