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Crítica | A Noite das Bruxas (2023)

Agatha Christie gótica.

por Luiz Santiago
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Em A Noite das Bruxas, estamos diante de uma das adaptações de Agatha Christie para o cinema, a cargo de Kenneth Branagh, que não traz ninguém cancelado no elenco e que não teve um tsunami de problemas de produção, exibição e recepção, como foi o caso de Morte no Nilo. Embora as ambições aqui sejam muito maiores — e o diretor e protagonista até consegue transmitir isso, em parte da fita –, chegamos ao final com um status bem similar ao de Assassinato no Expresso do Oriente (2017), que ao contrário da injustificada surra que levou de muita gente, é sim um “filme ok” (tal como este), dentro do que se propôs entregar. Nesta produção de 2023, o discurso já batido de Kenneth Branagh sobre “transpor a Rainha do Crime para as telonas fazendo inovações” ganha algum fôlego, mas parece ceder exageradamente às bobagens narrativas das produções convencionais, a fim de agradar a gregos e troianos, criando o trampolim para a diminuição da qualidade do projeto.

Diferente dos longas anteriores da trilogia, A Noite das Bruxas (que no original, indica uma atmosfera diferente no título: A Haunting in Venice) é uma adaptação livre de Hallowe’en Party, lançado em 1969. Embora algo da essência do original literário permaneça como gerador do mistério (uma festa para crianças, no Dia das Bruxas), o roteiro de Michael Green adota outra direção dramática, seguindo por caminhos que combinam mais com a exibição gótica que Branagh pensou para a película, amarrando-se à inteligente fotografia de Haris Zambarloukos, um velho conhecido dessa ‘franquia poirotiana‘. A primeira coisa que chama a atenção é a duplicidade de gêneros. Ao mesmo tempo que A Noite das Bruxas é um filme de mistério — mais especificamente, um “mistério de círculo fechado” –, o horror toma de assalto muitas partes da obra, com direito a pulos de susto e trilha sonora pensada para assustar aos poucos, criando uma atmosfera permanentemente hostil e ameaçadora.

Aposentado, Poirot vive em Veneza, que parece voltar ao seu otimismo, após a 2ª Guerra Mundial. Quem tira o velho detetive de seu torpor é a amiga e escritora Ariadne Oliver, que neste Universo, tem um papel essencial na criação da imagem pública de Poirot como um grande profissional de sua área. O filme não perde tempo em contextos introdutórios e nem na festa de Dia das Bruxas para as crianças. Os primeiros blocos narrativos são eficientes a ponto de nos entregar o momento atual do protagonista e dos coadjuvantes, e então parte “para o que realmente interessa“. No processo, ganham destaque os ângulos incomuns de câmera, o destaque para objetos macabros na tela e detalhes arquitetônicos que apontam para o medo. Como a maior parte do filme se passa durante a noite, dentro de um palácio decadente, pertencente à soprano Rowena Drake (Kelly Reilly), a sensação de claustrofobia e de opressão psicológica fica ainda mais evidente, e nesse ponto, aproxima-se também de Expresso do Oriente.

Encantado com o próprio personagem, Branagh dá uma atenção absoluta a Poirot e despreza a presença da maioria de seus coadjuvantes. A única que escapa a isso é a fantástica Michelle Yeoh, no papel da médium que deve entrar em contato com a filha falecida de Rowena Drake. Mas se olharmos para os outros atores e atrizes, todos são colocados em cena como pontes momentâneas para o brilho máximo do grande detetive, que também monopoliza o foco da câmera, uma escolha que corta a percepção mais profunda do público para com o todo. Filmes com elencos pequenos e bons atores em cena (só excluo Kyle Allen, de quem não gosto, e que penso ter sido um grande erro de escalação aqui) pedem diálogos afiados e interação equilibrada na dinâmica de cena, o que definitivamente não acontece. Somando isso à alternância entre o mistério, os assassinatos e o terror, A Noite das Bruxas torna-se um pêndulo estranho entre situações, ora exibindo cenas genuinamente maravilhosos, ora sendo repetitivo, cansando o espectador com falas sem nenhum polimento ou ridiculamente didáticas.

Existe, sim, um esforço legítimo do diretor para entregar algo que mostrasse Agatha Christie sob outras lentes, e no todo, esta não é uma experiência ruim. Mas me espanta que o estúdio tenha colocado tanto dinheiro em uma obra desesperada para agradar todo mundo, sem muito cuidado com a organicidade entre os personagens, e insistindo em retomar conceitos com explicações facilitadas  — a cena em que Poirot conversa com o pequeno Leopold (que grande ator mirim é esse Jude Hill, não?) sobre “as cartas enviadas“, chega a ser vergonhosa. E vejam que eu nem falei da montagem reafirmadora, que sim, poderia ser utilizada como um bom recurso para mostrar cenas do passado ou coisas que o espectador não achou que teria importância… mas é utilizada como salvação de quem não presta atenção no que está assistindo. Ou seja, extrapola para o lado negativo aquilo que, bem utilizado, fortaleceria o suspense.

Essa abordagem de Kenneth Branagh para A Noite das Bruxas tem seus pontos positivos e momentos de destaque, e não me incomodou nada a mudança radical frente ao que temos no livro. Com algumas boas cenas de susto, poucos diálogos marcantes e fotografia deliciosamente medonha, é possível se divertir em muitos momentos do filme. Contudo, aquilo que o diretor não faz (aproveitar bem o elenco e criar uma revelação menos óbvia ou engessada do criminoso) e aquilo que o filme faz constantemente (andar em círculos, repetir-se e se explicar em demasia) derruba a qualidade do projeto a ponto de deixá-lo mais próximo da mediocridade do que da grande admiração. O peso que isso traz é a dúvida sobre a continuidade da franquia. E os fãs das obras de Agatha Christie entram mais uma vez numa fase de espera angustiada, como se estivessem em sua própria “noite das bruxas“, à espera da boa bilheteria e de um anúncio positivo para a nova tentativa de um bom filme. Por outro lado, depois de três projetos ok, a pergunta que deve ser feita é: não seria melhor entregar a direção desses filmes a outro cineasta e deixar Branagh apenas como protagonista?

A Noite das Bruxas (A Haunting in Venice) — EUA, Reino Unido, Itália, 2023
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Michael Green (baseado em obra de Agatha Christie)
Elenco: Kenneth Branagh, Dylan Corbett-Bader, Amir El-Masry, Riccardo Scamarcio, Fernando Piloni, Lorenzo Acquaviva, Tina Fey, David Menkin, Camille Cottin, Kelly Reilly, Jude Hill, Yaw Nimako-Asamoah, Jamie Dornan, Clara Duczmal, Rowan Robinson, Michelle Yeoh, Emma Laird, Stella Harris, Emilio Villa-Muhammad, Vanessa Ifediora, Kyle Allen, Ali Khan, Esther Rae Tillotson, Winnie Soldi, Richard Price
Duração: 103 min.

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