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Crítica | A Nevrose da Cor, de Júlia Lopes de Almeida

Uma vampira antes de Drácula: um conto brasileiro publicado no século XIX.

por Leonardo Campos
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Ao longo do profícuo século XIX, a literatura brasileira trouxe um manancial de textos vinculados ao Romantismo e ao Realismo que tinha a autoria masculina como elemento dominante, haja vista questões específicas de um contexto histórico onde as mulheres ainda eram domadas para representar os valores do casamento, isto é, da boa esposa. As figuras ficcionais, delineadas por estes homens, que decidiam enfrentar o sistema cristalizado eram, em sua maioria, punidas de diversas maneiras, como são os casos de Lucíola e Aurélia Camargo, protagonistas dos romances de José de Alencar. Há, no entanto, algumas publicações do período que demonstram uma ousadia extra não apenas para quem assinava o que escrevia, mas também no desenvolvimento de seus personagens. Aqui, verso sobre Júlia Lopes de Almeida, uma escritora que não teve a mesma expressividade de outros autores da época, mas ao menos conseguiu ter seu material veiculado e lido na ocasião. A Nevrose da Cor é um destes textos, à frente do seu tempo pela forma soberba que sua heroína é apresentada, ainda que tanta afronta aos valores tradicionais seja punido com a morte no desfecho da história sangrenta e vampiresca.

No conto, temos outro ponto temático bastante interessante: a representação da figura vampira antes de Drácula, o mais famoso livro de Bram Stoker, publicado em 1897, romance considerado o definidor geral da imagem destes seres que anteriormente engatinhavam na literatura e na cultura, constante nos relatos orais de folclores de povos distintos. Sendo assim, antes do monstro deflagrador do caos nas ruas de Londres da Era Vitoriana, a escritora brasileira já tinha desenvolvido uma história sobre o sangue como substância para saciar a sede insaciável de uma personagem cruel e violenta. Inserido na coletânea Ânsia Eterna, de 1903, o conto foi publicado em 1889, na Gazeta de Notícias, jornal de grande circulação do Rio de Janeiro.

Na história, conhecemos a princesa Issira, integrante de uma poderosa linhagem egípcia ancorada por muita riqueza, sofisticação e dominância. Por meio de descrições com referências constantes aos elementos rubros que perpassam todo o conto, nós a conhecemos logo na abertura como alguém que se porta de maneira insubmissa. Enquanto recebe lições e máximas edificantes de um sacerdote que lhe explica as posturas adequadas para uma mulher de sua posição social, a personagem se demonstra desinteressada diante das instruções. Com pensamento distante e sem interesse nos valores morais que edificavam os privilegiados de sua época, a princesa reforça o quão ignora os ensinamentos por meio do rosto virado para a janela, a contemplar o que de fato lhe interessa: qualquer coisa vermelha.

Essa neurose (a nevrose do título do conto) se manifesta nos ambientes que atravessa, no vestuário, na escolha de tudo que é parte de seu cotidiano, um comportamento patológico descrito de maneira muito eficiente por Júlia Lopes de Almeida, num conto que me fez lembrar os poucos bons momentos de A Rainha dos Condenados, a equivocada sequência do clássico moderno Entrevista Com Um Vampiro. Issira, sempre insaciável, começa a degolar ovelhas brancas e beber o seu sangue, sonhar com um lago vermelho e beber sangue em preciosas taças de ouro, iniciando uma saga muito sedenta que acaba com a sua ruína. Diferente, por sua vez, de vampiros monstruosos delineados em outras composições literárias, a princesa é um ser intensamente vivo, de exuberante beleza, sedutora e exterminadora. Ela chega a picar o braço de um escravo e beber o seu sangue até o indivíduo encontrar o caminho da morte. Nesta luxúria sanguinolenta, acaba sendo castrada e, como sua posição se torna complicada, acaba por se sacrificar, tomando o próprio sangue até definhar sem elegância e morrer. No final das contas, eis uma vampira que se torna a sua própria última refeição.

Em linhas gerais, um conto envolvente e sedutor, eficiente na construção de sua atmosfera e que deveria ser mais conhecido pelos leitores brasileiros.

A Nevrose da Cor (Brasil, 1889)
Autor: Júlia Lopes de Almeida
Editora: Rocco
18 páginas

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