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Crítica | A Mulher no Lago (2024)

Duas vidas entrelaçadas.

por Ritter Fan
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Pegando emprestado a “narração em off de personagem morto” do incomparável Crepúsculo dos Deuses, A Mulher no Lago é uma intrigante minissérie em sete episódios desenvolvida e comandada pela israelense-americana Alma Har’el com base em romance de Laura Lippman que conta as histórias paralelas de duas mulheres bem diferentes na cidade de Baltimore, nos efervescentes anos 60 dos EUA. Entre fortes críticas sociais consubstanciadas por fatos históricos que permanecem como pano de fundo, Har’el assume riscos e ousa visual e narrativamente com sua obra, criando uma intrincada rede de situações que, mesmo se valendo de diversas reviravoltas e de um estilo rebuscado que muitos possivelmente rotularão de pretensioso, consegue funcionar bem como um retrato comprimido de uma época que não só traz ecos do passado, como infelizmente reverbera no presente.

Os gatilhos narrativos são o desaparecimento de menina judia Tessie Durst (Bianca Belle) durante a tradicional parada do Thanksgiving e a morte da mulher negra Eunetta “Cleo” Johnson (Moses Ingram), mesmo ainda não ocorrida, mas narrada como fato consumado pela própria, que leva ao envolvimento da segunda mulher, a também judia Maddie Schwartz (Natalie Portman). Maddie, casada, mãe e dona de casa, de um lado, é afetada pelo sumiço da garota e, de outro, estabelece, mesmo sem ela ter consciência imediata disso, uma conexão quase que espiritual com Cleo quando as duas se entreolham em uma desde já icônica cena em que Maddie procura por um vestido e Cleo veste esse vestido como manequim viva na loja de departamentos local, marcando não verbalmente com muita destreza e inteligência a divisão socioeconômica entre os que têm e o que não têm, entre os brancos e os afrodescendentes.

Enquanto Maddie, de classe média alta, vive um casamento que, para ela, é uma prisão que a impede de perseguir sua vocação de jornalista, sendo constantemente lembrada por seu marido e por seu filho de seu lugar na hierarquia, Cleo equilibra dois empregos, um como manequim de vitrine e outro como contadora no estabelecimento do gângster local, e um trabalho voluntário para uma política em ascendência na esperança de ser contratada e poder parar de correr de um lugar para o outro entre um marido que a ama, mas que não tem onde cair morto e dois filhos, um envolvido em jogo ilegal e outro muito doente. São duas prisões de naturezas diferentes, causadas por razões diferentes, mas que convergem em diversos aspectos, o principal deles sendo que Maddie e Cleo são duas mulheres, claro.

O que a minissérie oferece é um olhar dinâmico e muito realista de um recorte específico da sociedade da época que, como já disse, tem imediatas conexões com o mundo supostamente moderno de hoje, que Har’el floreia com uma abordagem visualmente complexa, repleta de desvios oníricos e até números musicais – inseridos diegeticamente na narrativa -, que cria um conjunto estranhamente harmonioso e, mais importante ainda, abre espaço tanto para Ingram quanto para Portman mostrarem seus talentos, inclusive com alguns flashbacks para décadas antes que exigiram excelentes transformações de maquiagem e penteado nas atrizes, além de, ainda que não tenha certeza, confesso, uso de CGI rejuvenescedor. É fantástico ver Portman nos convencer de que sua Maddie vive, na verdade, uma personagem em que ela entrou anos atrás e não mais consegue sair, somente começando a desvencilhar-se desse “papel” com as decisões que ela toma a partir do sumiço de Tessie. Da mesma forma, Ingram é como um caldeirão em ebulição, mas tampado, esperando o momento para explodir depois de uma vida inteira em que “escolha” inexistiu de seu vocabulário.

A reconstrução de época é caprichada, suntuosa mesmo, com filmagens em locação na própria Baltimore, usando diversos cenários diferentes, sem nenhuma tentativa de restringir os movimentos dos personagens e os roteiros conseguem inserir seus comentários sociais sobre racismo, misoginia e corrupção em meio à uma estrutura que por vezes é puro drama, outras vezes resvala no thriller. No entanto, por vezes Har’el parece não resistir e coloca muitas coisas diferentes ao mesmo tempo em seu prato e não consegue trabalhá-las a contento, dando a impressão – não completamente equivocada – de que sua abordagem de assuntos tão importantes é rasa e, por vezes, até “muito na cara”. É como se a desenvolvedora, diretora e roteirista tivesse decidido tomar alguns atalhos para economizar tempo de forma que seus arroubos estilísticos pudessem florescer, não sabendo controlar seus impulsos.

Mas, no conjunto, depois que a poeira baixa, A Mulher no Lago é como acompanhar uma verdadeira experiência audiovisual, um drama realista combinado com um thriller detetivesco que é embalado em um vistoso, desorientador, mas sofisticado papel de embrulho, servindo de veículo para Alma Har’el passar suas bem claras, por vezes didáticas – mas sempre necessárias – mensagens. E, claro, não atrapalha em nada que a minissérie seja um belo palco para Natalie Portman e  Moses Ingram brilharem.

A Mulher no Lago (Lady in the Lake – EUA, de 19 de julho a 23 de agosto de 2024)
Desenvolvimento: Alma Har’el (com base em romance de Laura Lippman)
Direção: Alma Har’el
Roteiro: Alma Har’el, Briana Belser, Nambi E. Kelley, Boaz Yakin, Sheila Wilson
Elenco: Natalie Portman, Moses Ingram, Y’lan Noel, Brett Gelman, Byron Bowers, Noah Jupe, Josiah Cross, Mikey Madison, Pruitt Taylor Vince, Wood Harris, Dylan Arnold, Tyrik Johnson, David Corenswet, Charlie Hofheimer, Ronnie Gene Blevins, Jennifer Mogbock, Bianca Belle, Veralyn Jones, Mark Feuerstein, Angela Robinson, Samir Royal, Hallie Samuels, Masha Mashkova, Nikiva Dionne, David Johnson III, Selema Masekela, Rebecca Spence, Daniel London, Sean Ringgold
Duração: 357 min. (sete episódios)

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