Na crítica de Prefeito Murdock, citei que no final do volume é revelado que Fisk corrompeu a eleição (uma ótima ideia para o tipo de premissa dessa história da eleição e para os conceitos em torno da rivalidade dos personagens), mas que tinha minhas dúvidas de que o autor desenvolveria isso no seu último volume à frente da série. E não é que eu estava certo? Infelizmente – mas não surpreendentemente -, Charles Soule termina sua inconsistente passagem pelas histórias do Demolidor com um arco final estranhíssimo, que até começa abordando um possível confronto com Fisk, mas que gradualmente se torna uma jornada por fantasmas do passado e delírios mentais após o herói sofrer um acidente quase fatal quando salva um jovem de ser atropelado. Estou me adiantando, porém.
As três primeiras edições desse arco até sugerem uma investigação de Fisk, com Matt montando uma equipe bizarra, mas interessante, composta por Nur, Reader (outro herói cego), ambos inumanos, e Cifra, membro relativamente famosinho dentro das histórias dos X-Men, todos com poderes que encaminham a narrativa para algo mais detetivesco e focado em descobrir como Fisk corrompeu as eleições. O início do arco chega a trazer uma ponta de curiosidade… até que Soule decide introduzir Mike Murdock, o irmão gêmeo fictício do protagonista, que Matt costumava usar como identidade secreta, que, aqui, é uma espécie de fragmento criado por Reader. Ou seja, basicamente temos uma cópia do mal do Matt, magicamente aparecendo dentro da história.
A presença do personagem não faz o menor sentido narrativo ou dramático. Primeiro que ele não agrega para a trama de investigação de Fisk. Muito pelo contrário, Mike apenas tangencia a narrativa, com o roteiro deixando Fisk de lado (mais uma vez…) para poder abordar esse esquisito arco espelhado do protagonista, que precisa perseguir esse problema inusitado enquanto deveria estar lidando com outra ameaça maior e substancialmente mais intrigante. Segundo que Soule não traz qualquer tratamento dramático que justifique essa ideia, com praticamente nenhum desenvolvimento do Demolidor em torno da presença do seu irmão gêmeo do mal – existe ali um ensaio sobre dualidade, sobre retorno ao passado ou até sobre revelar o lado sombrio do herói, mas nada que realmente seja trabalhado ou aprofundado para chamar a atenção. O pior é que Mike sai de cena sem nenhum tipo de resolução, com O Capuz recrutando o personagem para fins ainda não apresentados.
Após esse estranho desvio, era de se pensar que Soule voltaria para a trama principal com Fisk, certo? Ledo engano. Como o título do arco indica, o autor subitamente decide colocar Matt em um estado de quase morte, nos levando por uma jornada pelo passado do personagem se misturando com os eventos atuais que está enfrentando. Isso não é esclarecido de cara, mas é mais do que óbvio que tudo que estamos lendo faz parte de um sonho do personagem, algo que é enfatizado pela arte onírica de Phil Noto (que tem seu valor, com uso daquele estilo de aquarela que é bem bonito de ver) e pelos ecos das memórias do herói, que ganham espaço aqui em participações de figuras importantes, como Elektra, Stick e o Mercenário.
Até que existe algum nível de qualidade na forma que Soule basicamente faz uma espécie de homenagem torturante ao personagem, mas nada que realmente eleve a qualidade do arco, que faz de tudo para evitar a trama principal. Me pergunto se a editoria teve algum dedinho aqui, colocando Soule para dar voltas sem consequências que deixam alguns dos conceitos desse arco para a próxima run do Demolidor – inclusive colocando um título chamativo, porém enganoso, para vender alguns gibis a mais. De qualquer forma, o velho mote de “tudo está na cabeça do protagonista” é algo difícil de ser bem trabalhado, o que definitivamente não acontece aqui, no que é um desfecho anticlimático e indiferente para a passagem de Soule pelo herói.
A Morte do Demolidor (The Death of Daredevil) – #606 a 612 | EUA, agosto de 2018 a janeiro de 2019
Roteiro: Charles Soule
Arte: Phil Noto
Cores: Phil Noto
Letras: Clayton Cowles
Editoria: Lauren Amaro, Devin Lewis, C.B. Cebulski
162 páginas