John Ford não destaca-se dentro de seu meio apenas pelas belíssimas composições e quadros de seus filmes, e sim por ter entendido como ninguém a criação de um mito americano baseado na mentira e nas crônicas que a sustentam. É dentro das magníficas paisagens criadas por Ford que revelamos histórias reinventadas ao longo do tempo, desconstruções de ícones e grandes eventos. Sangue de Heróis (1948) é o mais significante dos casos, conto moral como independe o resultado de uma batalha para coroar o heroísmo dos soldados. Nas palavras de Peter Bogdanovich: “Ford imprime o fato“. Expõe-se o símbolo no lugar da verdade porque esse é o sentido da história dos EUA.
Só em 1939 Ford nos agraciou com duas de suas maiores criações: No Tempo das Diligências e A Mocidade de Lincoln. Mesmo que o primeiro tenha ofuscado o segundo com o passar dos anos, considero ambos filmes chaves para o entendimento da carreira do cineasta. No Tempo das Diligências diz respeito de um microcosmo, um estudo social partindo de uma diligência que trata de examinar diversas esferas daquele tempo sob a perspectiva do peregrino americano, sobretudo a formação de uma moral e uma conduta harmoniosa daquele corpo social que pouco difere dos Estados Unidos de hoje em dia ou de 1939.
Do outro lado, há A Mocidade de Lincoln, filme cuja missão é dispor o papel do indivíduo na sociedade, o exato oposto de No Tempo das Diligências. O que há de mais fordiano em reproduzir a história do mais famoso presidente americano é despi-lo e apresentá-lo como um jovem estudante de direito, as raízes de um ser mitológico sem qualquer parcialidade senão a transigência entre o certo e errado.
Abraham, ainda sem o menor peso no sobrenome que carrega, não passa de um pensador, aqui representado belissimamente por Henry Fonda. Comparada à pomposa interpretação de Day-Lewis no filme Lincoln (2012), de Spielberg, personagem já imponente e verborrágico no auge de seu mandato, o papel de Fonda é o de contemplador, um jovem em treinamento cujo silêncio reserva o importante dever de dar ouvidos ao outro. Não por menos, os planos de alguém falando dão-se não no locutor mas sim no ouvinte, Abraham que concentra-se no poder da palavra e é capaz de sintetizar o aprendizado em um simples plano de seu rosto.
Abe é um rapaz exilado, ainda alheio à sociedade cujas distinções de certo e errado ainda são incertas. Esse corpo estranho descobre nos livros do que se trata uma lei, mas põe em prática ao tanger os níveis sociais como distinguir as decisões racionais das emocionais. O mundo de Lincoln é de uma transigência incerta, procurando a verdade nos momentos mais simples e pondo em jogo seu conhecimento ao lidar com a comunidade, uma entidade que deve ser dominada pela presença da justiça.
O clímax do filme se passa num julgamento, uma prova final para o rapaz, que enfrenta não um embate jurídico baseado nos conhecimentos penais que adquiriu nos livros, mas sim um espetáculo de comédia sem o menor pudor, hiperativo e inconstante que requer muito mais que estudo. Lá Abraham, de frente para o interrogatório, retira seu mundialmente conhecido chapéu e o põe em cima da mesa. Esse simples gesto diz respeito ao desprendimento de seu legado e o abraço por uma própria unidade e visão de mundo desapegada do próprio mito. É uma noção equilibrada entre o conhecimento jurídico e a inocência de um jovem com fé no mundo que vive, um rapaz que não resiste aos mitos que construíram seu país e que acredita num futuro melhor graças a eles.
Young Mr Lincoln – EUA, 1939
Direção: John Ford
Roteiro: Lamar Trotti
Elenco: Henry Fonda, Alice Brady, Marjorie Weaver, Arleen Whelan, Eddie Collins, Pauline Moore, Richard Cromwell, Donald Meek, Judith Dickens, Eddie Quillan, Spencer Charters, Ward Bond, Jack Kelly
Duração: 100 min.
