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Crítica | A Misericórdia dos Deuses, de James S. A. Corey

A expansiva primeira parte de A Guerra do Cativo.

por Ritter Fan
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Somente conheci James S. A. Corey, pseudônimo conjunto dos autores Daniel Abraham e Ty Franck, por The Expanse, uma das melhores séries de ficção científica já produzidas e que é baseada na saga literária já encerrada composta de nove livros e diversas novelas que ele (eles?) escreveu. Minha intenção era ler tudo, mas preferi primeiro acompanhar a série até seu encerramento em 2022 e, quando finalmente tomei coragem de começar a maratona de leitura, descobri que a dupla estava para iniciar uma nova trilogia de ficção científica não relacionada com a anterior. Mais uma vez coloquei a “nonalogia” na prateleira de “a ler” e esperei o lançamento de The Mercy of Gods ou, em minha tradução literal, A Misericórdia dos Deuses, primeiro capítulo de A Guerra do Cativo.

Presumindo que a série The Expanse é próxima dos livros em que foi inspirada, pode-se dizer que ela camba para o lado do hard sci-fi, ou seja, para a ficção científica mais preocupada com o lado científico do que com o lado ficcional e isso me leva a iniciar a presente crítica já afirmando categoricamente, para aqueles que esperam o mesmo tipo de abordagem, que A Misericórdia dos Deuses caminha mais na direção oposta, de soft sci-fi, em que o como e o porquê técnicos ficam em segundo plano em relação a aspectos sociológicos e psicológicos. Mas isso não é demérito algum, vale dizer, pois várias das mais relevantes obras de ficção científica, como Um Estranho Numa Terra Estranha, a hexalogia Duna e as obras do Ciclo Hainish, de Ursula K. Le Guin, são todas soft. Outro aspecto importante a lembrar para a correta apreciação do romance é que ele se trata, muito claramente, sem nenhuma tentativa de esconder esse fato, de um primeiro capítulo de uma trilogia (que será composta também de pelo menos uma novela que será lançada ainda em 2024, mas que eu desconfio que outras virão, isso se a trilogia não for expandida, claro), ou seja, é uma introdução, uma primeira parte que sim, fecha um arco, mas nem de longe a história como um todo.

Feitos esses comentários preliminares, A Misericórdia dos Deuses é uma obra sobre conquista espacial no macro e sobre a humanidade tentando fazer a diferença no micro. Pode ser críptico, mas eu explico, sem spoilers: o cerne da história repousa na dominação do planeta Anjiin pelos Carryx que seleciona as mais brilhantes mentes humanas de lá e as leva para cativeiro em outro planeta onde elas têm que se mostrar úteis ao império sempre em expansão, com James S. A. Corey focando especificamente em um grupo de pesquisadores liderado por Tonner Freis que reconciliara a bioquímica das duas espécies mais importantes de seus planeta, os humanos e os corais. Mais especificamente ainda, apesar de haver desenvolvimento de todos os personagens do grupo, o foco fica em Dafyd Alkhor, um assistente de pesquisa que não é particularmente brilhante no que faz, mas que se mostra capaz de interpretar as mais variadas situações, notadamente de natureza política, de maneira mais ampla e lúcida que a maioria.

O livro começa de maneira lenta e até estranha, focando na política interna entre grupos rivais de pesquisa em Anjiin, sem dar nenhuma pista direta – pois as indiretas estão todas lá – da invasão que está por vir e, quando ela ocorre, tudo acontece quase que instantaneamente, sem que Corey perca tempo em estabelecer o novo status quo do grupo em um “coletivo” de espécies alienígenas cativas em um gigantesco complexo fazendo trabalhos variados de pesquisa para os Carryx. É muito inteligente a maneira como o autor é econômico nas informações, demandando que seus personagens, aos poucos, descubram como as coisas funcionam nessa prisão dominada pelos Carryx, refletindo como povos escravizados devem ter se sentido em um novo ambiente, com outras línguas e sendo forçado a trabalhar por sua sobrevivência. Mas, mesmo parecendo andar a toque de caixa, a construção mais ampla de mundo é fascinante e muito eficiente, com os primeiros parágrafos do romance já deixando evidente que os humanos em Anjiin não são nativos do planeta e eles sabem disso, apesar de não saberem de onde vieram, o que imediatamente cria um passado remoto de maneira muito semelhante ao que Frank Herbert faz em Duna, com a diferença que, na saga de Arrakis, há o conhecimento dessa origem. E, curiosamente, sabemos mais sobre o que Dafyd Alkhor representará pelas citações de relatos e obras mais ainda no futuro desse universo que abrem os capítulos, do que pelo que acontece em A Misericórdia dos Deuses (em outro paralelo com Herbert, aliás).

A narrativa, toda em terceira pessoa, não se fixa em um ponto de vista apenas e abre espaço para diferentes vozes dentro do grupo humano além de Dafyd, valendo especial destaque para Jessyn Kaul que luta contra seus demônios em diálogos internos cuidadosamente construídos que abordam a saúde mental e a consciência do paciente sobre sua própria doença. Por vezes, reconheço, há pulos demais entre personagens, especialmente no começo, o que pode criar alguma confusão antes de os nomes se fixarem na cabeça do leitor. No entanto, ao evitar a terceira pessoa onisciente, que vê tudo de fora, Corey consegue humanizar seus personagens de maneira mais econômica, ainda que ele não tente de forma alguma fazer com que o leitor crie empatia imediata ou mesmo a longo prazo por eles, talvez apenas com exceção da já citada Jessyn. Dafyd é furtivo e egoísta em seus pensamentos, Tonner é um sabichão que faz questão de demonstrar que é e assim por diante. Da mesma forma, essa troca de pontos de vista também permite que o autor pule também para as mentes alienígenas, levando a uma descrição de uma batalha espacial em larga escala que é, sozinha, um assombro narrativo e, também, à uma presença misteriosa denominada Enxame, que ganha inclusive itálico nos parágrafos dedicados à ela.

Não sou o chato da ciência, até porque estou bem longe de ser cientista ou grande conhecedor, mas o único aspecto de toda a tecnologia abordada sem minúcias no romance dada a natureza da obra, relaciona-se com a convivência de espécies biologicamente completamente diferentes sob um mesmo teto, ou seja, respirando a mesma concentração de oxigênio e com a mesma gravidade a que os humanos estão acostumados. Pareceu-me algo que poderia ter sido resolvido com uma ou duas frases contextualizadoras e explicativas, como os Carryx terem selecionado um grupo homogêneo de espécies para colocar na estrutura onde vivem, mas que infelizmente não se fazem presente na obra, pelo menos não nesse primeiro capítulo. Ser soft sci-fi nao é licença para jogar qualquer coisa na parede para ver se cola, mas, por outro lado, esse é um incômodo que pode ser mentalmente arquivado na categoria de “ah, deixa para lá”, considerando o quanto o livro é instigante e bem escrito, mesmo que o autor assuma o risco de criar um conjunto de personagens com que o leitor não estabelecerá conexão facilmente.

Quando virei a última página de A Misericórdia dos Deuses, porém, arrependi-me de ter começado a ler quase no dia de seu lançamento, pois isso significa que, agora, terei que esperar um tempo razoável até a segunda parte (imaginando, aqui, que Corey não vai dar uma de Stephen King ou – cadê a madeira para eu bater? – de George R.R. Martin, claro). Quem sabe não é a oportunidade perfeita para eu tomar vergonha na cara e ler The Expanse, hein?

A Misericórdia dos Deuses (A Guerra do Cativo #1) (The Mercy of Gods – Captive’s War #1 – EUA, 2024)
Autoria: James S. A. Corey (nom de plume de Daniel Abraham e Ty Franck)
Editora original: Orbit
Data original de publicação: 06 de agosto de 2024
Páginas: 432

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