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Crítica | A Mensageira (2024)

Quando Kafka encontra o espiritual.

por Frederico Franco
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Um dos romances mais celebrados e influentes do século XX, O Processo, de Franz Kafka, apresenta uma intrigante narrativa voltada para uma contumaz crítica à burocracia de mecanismos estatais. Josef K., protagonista da obra, é repentinamente processado sem saber o motivo. Sua vida, então, transforma-se em uma constante perseguição por parte de agentes da justiça. Ao longo do texto, Kafka coloca seu personagem em direto contato com estranhas relações de poder dentro de um sistema judiciário marcado pelo absurdo e por diversas situações cada vez mais burocráticas. Se em O Processo o protagonismo é entregue à uma vítima direta do mecanismo jurídico, A Mensageira mostra o outro lado da moeda: um funcionário, agente da lógica burocrática tecnocrata. A protagonista é Iris, uma oficial de justiça responsável pela entrega de mandados de despejo, mesmo fugindo de seus valores pessoais – como lembrado muitas vezes, ela apenas cumpre ordens. Contudo, após o sumiço de um ativista ocorrido logo depois da execução de um de seus mandados, Iris começa a investigar o caso e se imersa em uma complexa rede de influência do governo.

Iris é a algoz que Josef K. enfrenta em sua epopeia pelo sistema judiciário marcado pela burocracia. Se o personagem de Kafka nada sabe sobre seu processo, em A Mensageira também pouco se tem conhecimento a respeito das ordens de despejo articuladas por Iris e sua chefia. A justiça, aqui, é turva, pouco clara. A própria personagem de Clara Paixão mal consegue articular argumentos convincentes em relação a seu trabalho. Quando questionada, apenas afirma cumprir ordens de superiores. E quanto mais passa o tempo, mais vemos Iris afogada entre despejos e mais despejo – todos eles referentes à militantes negros com atuação religiosa. A chefia de Iris, ao mesmo tempo, reforça sua suposta importância para seu gabinete, mantendo-a longe de questionamentos e dúvidas. Seu trabalho é simples, robótico: cumprir mandados e ponto final. Qualquer coisa que fuja disso é rapidamente censurado ou impedido. De certa forma, a protagonista, cercada por esse mecanismo, se vê cega por uma visão idealista da justiça, acreditando piamente que o justo irá prevalecer ao final das contas. Essa visão torta é sempre reforçada por aqueles ao seu redor, seja sua chefe ou seu amante. Tudo leva a crer que a justiça será feita, independente dos meios.

Cega por esse ideal de justiça, Iris pouco percebe sua essência humana, visceral, ir desaparecendo aos poucos. Sua distância da religião parece colaborar com essa frieza. Seu universo é marcado por uma espécie de apatia geral. Desde a primeira cena de despejo a protagonista já não é construída por uma atuação naturalista ou realista. Vemos uma personagem robótica, fria, calada. Sua relação com os outros segue essa tônica: poucas palavras, gestos contidos, olhar perdido. Muitas vezes Iris parece fugir da câmera, como se rejeitasse o protagonismo a ela concedido. Os diálogos, beirando o artificial, são um mérito da direção para a construção da personagem. As cenas supostamente intimistas como, por exemplo, o sexo com o amante, não possuem nada de confortável, parecendo encenado, sem vida.

A Mensageira é marcado por uma forte presença de um cenário religioso. Em contato com sua essência espiritual, Iris encontra um momento de respiro, alívio, do sufocante mecanismo judicial. O contato com a esfera religiosa surge para se opor à crueza da realidade capitalista baseada na transformação do ser humano em uma máquina programada apenas para cumprir ordens. Não à toa, o sumiço que motiva o filme é relativo a um homem ativista religioso. O encontro com o religioso serve como consolo frente à tecnocracia do trabalho de Iris. Dentro dessa dinâmica, a protagonista recupera o brilho no olho e sua vividez. A crença superando a tautologia.

Quanto mais o tempo passa, mais Iris mergulha no mecanismo estatal, colocando-se em situações cada vez mais absurdas. Aqui, Kafka retorna com todo o fôlego: uma sala na qual as pessoas apenas conseguem caminhar agachadas, uma enorme quantidade de pessoas trabalhando em seus cubículos (à Playtime, de Jacques Tati). É nesse círculo realismo mágico que ganha destaque o personagem de Vladimir Brichta, uma aparição fantasmagórica que assume diferentes facetas: um corretor de imóveis macabro e, ao mesmo tempo, um guru do mecanismo judicial. A atuação beira o apavorante. Surge repentinamente como a morte e O Sétimo Selo. Pálido, esguio, profético e amedrontador. Não se sabe se é uma entidade mágica ou uma materialização das dinâmicas de força capitalista. A câmera parece ser sugada pela potência corporal do trabalho de Brichta. Não contente em se impor com uma voz maquiavélica, o ator faz de seu corpo mais uma arma para crescer diante da protagonista, sempre a deixando acuada, presa em seu canto. 

O final da obra parece abraçar um otimismo que não aparece durante sua construção. A protagonista, desprendendo-se da fria vida voltada para o capital, encontra refúgio em uma comunidade religiosa, encontrando-se sã e salva das amarras da burocracia judicial. E falando em justiça, ela acaba prevalecendo: os culpados são presos e Iris está livre. Esse olhar otimista não é exatamente funcional do ponto de vista de organicidade da obra – parecendo contradizer todo o discurso relativo à força do sistema. No entanto, nada apaga os méritos de Cláudio Marques de se tornar Kafka durante um filme.

A Mensageira – Brasil, 2024
Direção: Cláudio Marques
Roteiro: Cláudio Marques
Elenco: Clara Paixão, Daniel Farias, Evelin Buchegger, Edvana Carvalho, Hamilton Borges, Márcia Limma, Heraldo de Deus, Vladimir Brichta, Diana Magnavita, Cândida de Deus, Luiz Pepeu
Duração: 142 min.

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