Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | A Memória Infinita

Crítica | A Memória Infinita

Esquecendo, mas sem perder a Memória.

por Ritter Fan
635 views

A doença de Alzheimer assusta-me tremendamente não só por eu ter tido experiência na família com ela, mas também por eu estar chegando na idade em que ela poderia aparecer no horizonte. Perder a memória é perder quem você é, sua identidade, um processo que, claro, tem reflexos terríveis em relação a seus entes queridos e isso não é algo que eu sequer goste de imaginar, quanto mais de ver desdobrando-se na minha frente por meio de um documentário como A Memória Infinita. Mas toda a minha trepidação de enfrentar o longa chileno esvaiu-se logo nos minutos iniciais.

O documentário acompanha Augusto Góngora, jornalista proeminente, e Paulina Urrutia, atriz que já foi ministra da cultura e das artes do Chile, que formam um casal amoroso e inseparável há 23 anos, mesmo considerando que ele é consideravelmente mais velho do que ela. Diagnosticado com Alzheimer há oito anos, Augusto passa a ser amparado em casa por Paulina – ou Pauli como ele a chama – e o longa acompanha a inclemente e terrível evolução da doença por alguns anos com filmagens mais profissionais e também outras amadoras, da própria Paulina (que não tem muita habilidade com a câmera), especialmente durante o período mais pesado da pandemia. Trata-se de um comovente e belíssimo atestado de dedicação de uma esposa por seu marido que é suficiente para trazer lágrimas aos olhos de quem assiste e um incrível respeito por Paulina em seus esforços para manter-se próxima de Augusto mesmo nos momentos mais críticos, em que ele não a reconhece ou sequer sabe quem ele é.

Mas a diretora Maite Alberdi consegue oferecer ainda mais com A Memória Infinita, tornando sua obra algo que vai além desse recorte triste e específico das vidas de Augusto e Paulina. Aproveitando-se do fato de que Augusto sempre foi um jornalista que lutou contra a ditadura de seu xará Pinochet enquanto a ditadura estava em andamento e que, depois, fez de tudo para manter viva a memória do que ocorreu, Alberdi paraleliza o drama de Augusto perdendo a memória e o de seu país fazendo de tudo para não esquecer o passado sombrio que teve entre 1973 e 1990. Diria que o foco ainda é no casal no presente, mas que essa luta que marcou o passado de Augusto e de seu país é parte indelével dele e estabelece mais fortemente ainda sua identidade, o que torna sobremaneira doloroso vê-lo perdendo quem ele é, ao mesmo tempo em que é um testamento de que aquilo que ele fez pelo Chile sempre perdurará e não será esquecido.

Não é intenção de Alberdi aprofundar-se na história recente de seu país ou mesmo nos tempos áureos de Augusto, muito antes do Alzheimer. O que ela faz é um apanhado geral para falar sobre a memória do indivíduo e a memória coletiva, fazendo justaposições das duas sem jamais perder de vista o relacionamento invejável entre Paulina e Augusto e, talvez mais do que isso, a dedicação absoluta de Paulina a seu marido em anos que só vão ficando mais difíceis. Há urgência no que é mostrado, uma urgência que se materializa nos cada vez mais raros momentos lúcidos de Augusto que são entremeados por outros em que ele anda pela casa falando de seus livros queridos ou falando consigo mesmo no espelho, achando que seu reflexo é uma outra pessoa, a única em quem ele pode confiar, o que só lacera os corações dos espectadores e, claro, principalmente de Paulina. Mas essa perda irreparável e irreversível no lado pessoal é banhada em ouro pela forma como Alberdi deixa bem claro o valor daquilo que Augusto deixa para trás. Vai-se a memória de um homem, mas fica a memória de um povo.

A Memória Infinita, em razão de seu tema, definitivamente não é um documentário fácil de se assistir, mas ele é belíssimo e até poético na maneira como os dois tipos de memória são colocados em oposição, o que, no final das contas, valoriza Augusto Góngora e seu trabalho de décadas e também, claro, Paulina Urrutia e sua devoção ao marido que afeta completamente sua vida pessoal e profissional. Mas a memória que fica é a memória que importa e Maite Alberdi documenta justamente isso, para evitar que o esquecimento de Augusto em razão de sua terrível enfermidade seja refletido no esquecimento coletivo de um regime aterrador de décadas.

A Memória Infinita (La Memoria Infinita – Chile, 2023)
Direção: Maite Alberdi
Roteiro: Maite Alberdi
Com: Augusto Góngora, Paulina Urrutia
Duração: 85 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais