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Crítica | À Meia-Noite Levarei Sua Alma

por Luiz Santiago
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Produzido no melhor estilo do cinema verdadeiramente criativo, praticamente artesanal, com poucos recursos, parte do cenário com coisas doadas, roubadas de uma praça do Centro Velho de São Paulo ou reaproveitadas de outras produções, À Meia-Noite Levarei Sua Alma é, sem dúvidas, um marco no cinema brasileiro. Produzido entre 1963 e 1964 (estreando em 9 de novembro deste último), o filme foi um grande impacto causado por José Mojica Marins e por seus alunos da escola de atores, cuja verdadeira fama só viria mesmo anos depois, com a popularização do personagem de forma massiva pela TV e especiais de lançamento em home video (incluindo aí Estados Unidos e Reino Unido, onde o protagonista é conhecido como Coffin Joe).

Em outubro de 1963, Marins teve um pesadelo no qual um vulto/espírito o arrastava para o túmulo. Daí veio a ideia para a criação de um personagem macabro, que aos poucos foi ganhando características cada vez mais infames e assustadoras, partindo de suas roupas inspiradas no Drácula de Béla Lugosi e suas unhas à la Nosferatu, até a postura niilista, violenta, obcecada pela genealogia e o símbolo da posteridade do sangue. E se hoje festeja-se esta mistura de cinema fantástico com cinema de terror trash, é preciso lembrar que à época, a obra estreou em poucas salas e contou com movimentação de setores cristãos da sociedade brasileira por conta da cena em que Zé do Caixão come carne em plena Sexta-Feira Santa.

Agente funerário temido e odiado em sua pequena cidade, Zé do Caixão (cujo nome verdadeiro é Josefel Zanatas — José + fel + Satanás de forma estilizada, escrito de trás para frente) tem neste seu primeiro filme uma via crucis pessoal, marcada, de maneira quase despreocupada, com a quebra da quarta parede pelo próprio Zé (interpretador por Marins), falando sobre o sangue e a continuidade da vida; e pela Velha Bruxa (também chamada de cigana e feiticeira no filme, personagem interpretada por Eucaris Moraes), que fala sobre o tempo da alma e sobre a coragem. Claro que estas são mensagens de indução ao medo no público, mas percebemos o quanto elas possuem significados para os personagens em cena. Um deles, ligado às artes ocultas, às visões do futuro e alertas de vida. Outro, ligado à tortura e a diversos crimes, como estupro, assassinato, mutilação e tortura.

O grandioso acerto aqui foi o uso da criatividade do diretor e sua equipe ao criar os cenários. A fotografia de Giorgio Attili tenta organizar uma atmosfera de sombra e luz, mas não consegue muita coisa. Sobra então para o desenho de produção dar ao espectador o ambiente sinistro onde o medo e o mal podem se proliferar. A cabana da Bruxa é um exemplo onde essa organização visual é maravilhosamente mística, abarrotada de símbolos espirituais, xamânicos e pode ser levada para o bem. Já a casa de Zé, com quadros, esculturas de mãos e todo tipo de velharia macabra à mostra traz a sensação de que existe alguém vigiando, puxando, submetendo as pessoas a um certo tipo de prostração enquanto estão lá dentro. O contraste vem com o outro cenário de destaque da obra, o bar que Zé do Caixão visita e onde aterroriza os outros clientes, o dono e a jovem garçonete.

Considerando o meio de produção do filme e intrigado pelo personagem principal, o espectador compra rapidamente a ideia e embarca cedo no filme. As claras declarações de superioridade de Zé do Caixão, a denominação que ele vê todo e qualquer tipo de crença como algo ridículo (Deus e Diabo para ele são apenas produto de mente de supersticiosos, daí suas falas e atos considerados “hereges”, mas que desafiam os dois lados da moeda) e sua obsessão por encontrar a “mulher certa” que possa lhe dar o “filho perfeito” são coisas que se destacam imediatamente, seja pelo absurdo mal trato em relação às mulheres e à violência generalizada do personagem contra todos. O que faz a narrativa cair progressivamente é a (talvez?) redenção ao moralismo, quando Zé tem, de fato, a sua alma levada pelos mortos, conforme lhe prometera a Bruxa, em uma excelente sequência de pequenos sinais que indicam a chegada das almas penadas.

A sequência final, com direito a (d)efeitos especiais curiosíssimos, é a que mais pesa em termos negativos para o filme. Claro que alguns diálogos, a montagem e as inconstâncias da fotografia no começo são elementos que contam como peso para o filme, mas o longo tormento de Zé é insuperável. Sua fuga das almas, os gritos, a música que vai aos poucos perdendo o impacto inicial… a sequência inteira que poderia ter grande força, acaba se enfraquecendo por ter mais tempo do que deveria, mostrando apenas a fuga do vilão pelas redondezas do cemitério e sua terrível mudança visual, com excelente maquiagem e próteses, como também se usou em outros momentos do filme.

Mesmo que seja apenas uma obra mediana, À Meia-Noite Levarei Sua Alma é um filme interessante de ser ver. Para alguns, dado os cacoetes do baixo orçamento, pode ser até engraçado. Para outros, é uma baita produção criativa feita com pouco dinheiro e material, colocando o Brasil em um cinema de gênero, desafiando a igreja e cometendo uma séries de “ismos” negativos, praticamente um escândalo a cada sequência, para padrões contemporâneos. Só por isso, é uma obra que vale a pena ser vista.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma (Brasil, 1964)
Direção: José Mojica Marins
Roteiro: José Mojica Marins, Magda Mei
Elenco: José Mojica Marins, Magda Mei, Nivaldo Lima, Valéria Vasquez, Ilídio Martins Simões, Arildo Iruam, Genésio de Carvalho, Vânia Rangel, Robinson Aielo, Avelino Morais, Leandro Vieira, Antônio Marins, Mário Lima, Eucaris Moraes
Duração: 84 min.

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