A base estrutural da formação do mito das sereias é muito mais assustadora que lúdica. A Maldição da Sereia, lançado em 2019, segue a linha tenebrosa destas criaturas mitológicas, mergulhadas num tom sombrio e funesto bastante diferente dos herdeiros de Splash – Uma Sereia em Minha Vida e A Pequena Sereia, clássicos da comédia romântica e da animação da Disney, respectivamente, responsáveis por calcificar determinada imagem destes seres metade humano e metade peixe para a indústria cultural. Ao longo de seus 91 minutos, adentramos por uma narrativa cheia de momentos intensamente macabros, orquestrados pelo cineasta Jeffrey Grelhman, direcionado pelo roteiro escrito numa parceria com Kelly Lauren Baker. O mote é o estabelecimento da identidade num ambiente hostil, a formação de um grupo de apoio entre mulheres assediadas e a violência nas relações humanas, quando um determinado “eu” se encontra com o “outro” e uma crise de interesses e subjugação logo se desenha, sina da própria humanidade há eras.
Por meio da sombria direção de fotografia de Terra Gutman Gonzalez, acompanhamos momentos com mescla de luminosidade, representativa de um ideal de liberdade distante dos personagens acossados, em paralelo ao tom opressor da paleta atmosférica adotada pelo setor, repleta de trechos escuros, úmidos e sombrios, reforçados pelo acompanhamento sonoro da composição de Christopher Lord e E. Shepherd Stevenson, adequados para manutenção do clima de horror proposto pela história que é pecaminosa em seus atributos dramáticos, até mesmo tediosa em diversos trechos, mas instigante por apresentar um ponto de vista menos óbvio para o mito em questão. Ainda na seara estética e narrativa, temos o imersivo design de som de Hemang Prajapati, competente no desenvolvimento de elementos auditivos para transformar A Maldição da Sereia numa jornada de horror com toques de drama psicológico, ajudados pelos figurinos de Beth Glasner ao trajar as personagens dentro de suas necessidades e perfis dramatúrgicos. Não fosse alguns problemas de ordem textual, o filme seria um digno exemplar de representação macabra das sereias no cinema. Há boas propostas, mas falta equilíbrio na direção e condução dos fatos.
Vamos ao enredo. Na trama, dois marinheiros acreditam piamente na existência de sereias no mar e embarcam para o encontro de uma dessas criaturas. Em determinado momento, eles capturam um peixe grande e a rede é arrastada. Um deles tem a vida ceifada e o sobrevivente consegue lutar ao perceber que captou uma sereia. Violentamente, ele desfere um golpe de machado e separa a cauda da criatura do dorso, imprimindo dor e sanguinolência na sereia capturada, tratada pelos créditos apenas como The Mermaid (Alexandra Bokova), um ser que pode ser considerado alegoria para o que refletimos sobre um “peixe fora d’agua”, sem voz para se comunicar com as pessoas e adepta em determinado momento da língua de sinais como alternativa de comunicação. Numa terapia de grupo, ela narra dolorosamente sobre o genocídio de sua espécie e começa a deixar as demais mulheres que a acompanham menos céticas sobre a sua real identidade, isto é, o fato de ser uma sereia. Mas antes disso, precisamos falar sobre os desdobramentos do ato violento e da condução para um hospício, comandada por um cientista, o Dr. Beyer (Burt Culver), homem que observava a sua captura numa embarcação à distância. Ele se aproxima, faz contato com o marinheiro, antes de mata-lo, para depois, levar a sereia para a instituição onde um reinado de terror será estabelecido. Ele não tem interesse em ajuda-la. Seu lance é a exploração.
É assim que recuperada fisicamente, a sereia adentra por uma jornada de angústia ao se sentir aprisionada num lugar que não lhe transmite pertencimento. Quando acontecimentos estranhos começam a tomar conta do espaço, as outras pacientes começam a levar em consideração o fato de que ele pode mesmo ser o que diz: uma sereia, nada feliz com a sua condição de oprimida. Laços começam a se formar entre as personagens, mas o grande problema é que nenhum deles é trabalho com a devida dignidade. Falta melhor desenvolvimento dos perfis, das necessidades dramáticas, os diálogos são muito opacos, deixando a ideia de fundação de uma família prejudicada diante de todo o seu potencial. A sereia, aos poucos, se torna uma delas, parte integrante de uma “comunidade literalmente imaginada”, todas acometidas por uma situação de saúde que define de alguma forma os seus perfis. Como já mencionado, o grande problema em A Maldição da Sereia é o seu arco cheio de personagens desnecessários e com elaboração superficial, inserção de elementos fantasmagóricos que atrapalham o ponto nevrálgico da colonização de mulheres oprimidas, dentre elas, uma sereia, além da história se ofertar ao publico como uma narrativa complicada, longe da complexidade, um conceito totalmente diferente.
As sereias, personagens tão densos e com carga simbólica considerável, mereciam uma abordagem mais cuidadosa. A produção tentou, mas não deu certo ao naufragar em suas intenções, tal como os navegantes das narrativas míticas que exploram o sedutor e perigoso canto das sereias, belíssimo, porém mortal.
A Maldição da Sereia (Mermaid Down) — EUA/Reino Unido, 2019
Direção: Jeffrey Grellman
Roteiro: Jeffrey Grellman, Kelly Lauren Baker
Elenco: Alexandra Bokova, Phillip Andre Botello, Eryn Rea, Meggan Kaiser, Megan Therese Rippey, Burt Culver, Cara Bramford, Ashley Cordelia
Duração: 91 min.