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Crítica | A Maldição da Mansão Bly

por Leonardo Campos
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Depois do sucesso no formato adotado em 2018 com o ótimo desempenho obtido em A Maldição da Residência Hill, era inevitável que Mike Flanagan, criador do programa, investisse no amplo repertório cultural de casas assombradas em nosso imaginário. Na primeira incursão, tivemos um giro macabro e mergulho profundo no clima fúnebre de A Assombração da Casa da Colina, romance de Shirley Jackson que já inspirou muitos filmes e produtos culturais que traduziram o seu conteúdo para outros suportes narrativos. Desta vez, o realizador trouxe para os nove episódios de A Maldição da Mansão Bly, o universo fantasmagórico de Henry James e seu clássico A Volta do Parafuso, publicação conhecida por ter encontrado algumas ressonâncias no excepcional Os Outros e no recente Os Órfãos. Com um time mais amplo de roteiristas e diretores no comando da produção, o formato anterior se mantém, isto é, um esquema estético deslumbrante e um clima ominoso a gravitar constantemente em torno dos personagens.

O que muda agora é o ritmo do macabro presente em cena. Mais focada no lirismo das imagens e no desenvolvimento de questões peculiares dos personagens, a série se distancia do horror explicito e inquietante da produção antecessora, agora mais voltada ao processo de luto, culpa e dor que envolve o traumático passado das figuras ficcionais que circulam pelos espaços da gigantesca e enigmática mansão. É como se a narrativa nos dissesse que o horror puro está mais nos fantasmas que insistem em habitar o nosso inconsciente e se manter atrelados aos rumos que tomamos depois que algo trágico se estabelece nos desdobramentos cotidianos de nossas vidas. Em seus episódios que trafegam entre os 40 e 50 minutos de duração, A Maldição da Mansão Bly começa na atualidade, num evento elegante onde as pessoas contam histórias de fantasmas. Num determinado momento, alguém toma o turno da fala e diz que tem uma desconcertante história para narrar. Salvaguardas as devidas proporções, funciona como nas lendas urbanas, quando ela diz “aconteceu com alguém conhecido dela”. Somos remetidos para 1987, numa narração que funcionam bem e promove um bom jogo situacional.

É quando adentramos no clima do clássico de Henry James, história sobre uma governanta que é contratada para cuidar de duas crianças numa casa localizada numa zona remota da Inglaterra. O local, a ser apresentado na série um pouco mais adiante no episódio, é um campo profícuo de circulação de almas que parecem perdidas nas histórias que envolvem o passado do lugar. Aqui, Dani Clayton (Victoria Pedretti) é a personagem que se dedicará aos cuidados de Flora (Amelia Bea Smith) e Miles (Benjamin Evan Ainsworth), crianças aparentemente ainda enlutadas pelo acidente que ceifou a vida de seus pais. Sob a tutela do tio, eles vivem nesta mansão supervisionada por Mrs. Grose (T’Nia Miller), personagem-chave para compreendermos uma série de acontecimentos que se revelam nas reviravoltas do texto do meio para o final da temporada. Se as crianças inicialmente parecem ambíguas, num misto de sadismo e inocência, o mesmo pode ser dito dos demais habitantes e funcionários da Mansão Bly, frequentemente visitada pela presença espiritual ou não de Peter (Oliver Jackson-Cohen), figura que tal como os demais, possui uma relação fortíssima com o lugar, mas diferente dos demais, tornou-se um elemento indesejado, transmissor da sensação de perigo, espécie de catalisador do horror.

Dani Clayton, inicialmente animada, transforma-se numa mulher em perigo, sem compreender logo de cara os problemas que precisará enfrentar para garantir a sua permanência no local. Sua história é respeitosamente trabalhada pelo programa ao longo de toda a série, com destaque para o sensacional desenvolvimento do quarto episódio, um estudo fantástico sobre culpabilidade, perda, luto, numa explanação detalhada dos motivos que a fazem temer determinada figura que é apenas o preâmbulo dos horrores que serão explicitados mais adiante. Importante ressaltar que essa atmosfera de horror mencionada é trabalhada por meio de mecanismos dramáticos, mais voltados ao texto e contexto de A Maldição da Mansão Bly, série que evita o sangue e a presença fúnebre gratuita e prende-se, distante do grafismo geralmente esperado, no drama humano, algo que dentro de determinadas circunstâncias, pode ser mais horripilante que monstros, demônios e cenas de violência.  A segunda parte desta antologia de Mike Flanagan com clássicos assombrados é mais lenta que A Maldição da Residência Hill, propositalmente vagarosa na condução de suas situações, despreocupada em ser frenética para atender ao grande público.

O desenvolvimento, por sua vez, é impecável, mesmo que o destino do programa seja tomado por alguma previsibilidade desde os seus primeiros momentos. Por ser uma história espalhada como um rizoma pelo imaginário popular, o texto literário de Henry James, ponto de partida para estruturação do esqueleto dramático da série, promove a sensação de já termos visto tudo isso antes, em variadas ocasiões. Saliento, não é um problema narrativo, mas pode ser embargo para as plateias contemporâneas, demasiadamente sedentas por novidades, algo intrínseco e cultural ao mundo já saturado de imagens e com extensa tradição milenar narrativa. O clima fúnebre proporcionado pela ótima direção de fotografia de Maxime Alexandre e James Kniest favorecem os demais elementos estéticos deste programa que é uma obra-prima do audiovisual, formado por enquadramentos que em alguns trechos, parecem belíssimas pinturas em movimento. O resultado de tudo isso é também parte do design de produção de Patricio M. Farrel, setor que desempenha a materialização do espaço com muita eficiência. Outro ponto importante para o desenvolvimento estético é o design de som, afinal, estamos falando de uma localidade assombrada, departamento assinado por Trevor Gates, responsável pelo ranger de portas, vidros estilhaçados, e claro, alguns jumpscares que soam excessivos, mas não estragam a narrativa.

O desenvolvimento do arco Dani Clayton é o ponto nevrálgico de A Maldição da Mansão Bly, mas os coadjuvantes também ganham um dedicado trabalho no texto, personagens acompanhados pela atmosférica condução sonora, fundamental para o estabelecimento do clima aterrorizante proposto pela produção. A dupla The Newton Brothers assumiu a trilha, mais um trabalho no campo do terror, bem-sucedido dentro de sua proposta em emular o clima da novela de 1898 para uma realização seriada em 2020. Com tantas possibilidades proporcionadas pela vasta presença de mansões assombradas em nossa história literária, a serialização do tema iniciado por Mike Flanagan tem tudo para continuar acontecendo, agora dentro de outros universos e perspectivas. Nas próximas incursões, talvez seja interessante dar continuidade ao processo de manipulação da linguagem audiovisual para chegar aos resultados esperados, isto é, o apuro estético, mas também adentrar por universos que não sejam exclusivamente voltados ao esquema narrativo ambientado exclusivamente na tradição literária em língua inglesa, afinal, não seria interessante experimentar as sensações de horror proporcionadas por localidades assombradas de outras culturas que não sejam apenas o referencial anglo-saxônico?

A Maldição da Mansão Bly – (The Hauting of Bly Manor, EUA/2020)
Criação: Mike Flanagan
Direção: Mike Flanagan, Liam Gavin, Ben Howling, Yolanda Ramke,
Roteiro: Mike Flanagan, Henry James, Meredith Averill, Julia Bicknell, Paul Clarkson, James Flanagan, Michael Clarkson,
Elenco: Victoria Pedretti, Amelia Bea Smith, Benjamin Evan Ainsworth, T’nia Miller, McKenna Grace, Violet McGraw, Henry Thomas, Oliver Jackson-Cohen, Elizabeth Reaser, Samantha Sloyan, Kate Siegel, Timohy Hutton
Duração: 42 a 50 min. por episódio (09 episódios no total)

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