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Crítica | A Lira do Delírio

Um mundo regido pelo prazer.

por Frederico Franco
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A cena inicial de A Lira do Delírio já é o suficiente para Walter Lima Jr destacar suas principais articulações estéticas que seguem durante o filme todo. Um carnaval, um aglomerado de transeuntes que dividem o mesmo espaço, o mesmo átomo; uma produção de energia cuja função é gerar mais e mais energia ou prazer. Prazer, energia, curtição: cada um dos corpos ali espalhados contagiam uns aos outros a fim de manter viva a pulsação ininterrupta da festa ali enquadrada. Entre as imagens da festança, surge um rosto humano sobreposto – um rosto pintado de branco, um olhar perdido que vagueia pelo nada. Sua expressão aparenta um total distanciamento da alegria produzida pelo carnaval: encontra-se, aqui, um gesto melancólico, como se o homem, mesmo envolto pela festa, não conseguisse adentrar no espaço da curtição. Esse personagem parece surgir como um elemento que diz que, independente da festança, a melancolia segue sendo a regra, transformando a felicidade e o gozo em um espaço de exceção. A folia inicial apenas disfarça de modo contundente a letargia e o sofrimento interno do cotidiano banal daqueles que integram as festividades. 

Assim como os protagonistas que, desde o princípio, entregam-se ao princípio do prazer que rege a festa, o diretor também faz questão de montar uma encenação que aproveita cada segundo da curtição, da transpiração e da energia possante. Existe na câmera de Walter Lima Jr uma tentativa de cobrir todos os principais eventos carnavalescos contidos nesse curto espaço-tempo frequentado pelos personagens. Cada mínimo detalhe enérgico e fugaz é compreendido como um elemento importante que compõem essa sinfonia corporal. A rua e o espaço público vêm a se tornar uma importante matéria-prima para o diretor, que faz questão de acentuar a beleza oculta contida nas pequenas ações ali construídas pelo público. Lima Jr, em dado momento, parece buscar construir sua própria Apocalipopótese: um evento grupal, movido única e exclusivamente por uma infinita geração de energia e prazer. Sai a linguagem clássica dos estúdios de filmagem, dando espaço para o desenvolvimento de imagens públicas, coletivas, urbanas; as ruas e vielas, aqui, são mais do que um puro requinte estético: são um personagem central de toda a narrativa do filme.

Durante toda sua duração, A Lira do Delírio é regida exclusivamente por um princípio do prazer, abandonando racionalismos exacerbados. O que importa, na diegese de Walter Lima Jr, é a liberdade corporal de ambos personagens e da câmera – esta última, responsável por invadir espaços públicos e privados sem qualquer receio. A grande protagonista da obra, Ness Elliot, interpretada por Anecy Rocha, é um exemplo claro de como a obtenção do prazer é a grande força motriz do filme. Mesmo em situações de carga dramática pesada, Ness não se vê longe de um espaço de curtição; a melancolia, regra da vida, é deixada de lado em prol da exploração da festa – a festa, por conseguinte, oprime a dor. A personagem Anecy possui, curiosamente, um nome inspirado em uma figura central do século XX, remetendo ao agente estadunidense Elliot Ness, responsável por investigações a figuras como Al Capone. Elliot, o original, é, portanto, uma representação clara de um homem do dever, da lei; por outro lado, Ness, abrasileirada, é quase que uma antítese do detetive. Em uma narrativa pautada pela curtição, que vá para o raio que o parta o gringo. Ness de Aracy é mais uma da multidão que busca produzir e se alimentar de mais prazer. O dever que fique para outra hora.

Ao envolver o espectador em inúmeras festas e celebrações carnavalescas, relações de ancoragem temporal se tornam exercícios complexos e, sobretudo, pouco produtivos. Passado, presente e futuro são apenas um grande devir: o tempo se articula de modo diferente por aqueles que se veem imersos pela festa. Os mesmos personagens se repetem, coexistindo nessa confusa massa temporal. Colocando-os assim, comparados a si mesmos, todos os protagonistas são expostos através de suas ambiguidades e, mais importante, fragilidades. As percepções temporais são peculiares, haja visto que, durante a curtição, existe um desejo oculto de não fazer o relógio andar: cada minuto é um minuto a mais de prazer a ser explorado. Todas as peças do filme são, inevitavelmente, envolvidas pela festa: jornalistas, pequenos burgueses, marginais. Frente ao carnaval todos são interpretados da mesma forma; ninguém é mais que ninguém, todos são igualmente vistos como mais uma pessoa em busca de prazer e diversão. Além disso, ao longo do filme, são poucos os espaços que ganhamos longe da festa – e, coincidentemente, são os trechos de menor inspiração de Walter Lima Jr. 

Ao apostar suas fichas em um universo pitoresco e marginal perante a sociedade, o diretor aponta para um importante direção no que diz respeito à importância da marginalidade dentro da sociedade. São eles, os marginais, os símbolos de uma resistência frente aos valores morais de uma burguesia corrupta. É como Hélio Oiticica pontua em O Herói Anti-Herói e o Anti-Herói Anônimo: não se trata de extrair figuras messiânicas da marginalidade, mas sim de transformar tais elementos em símbolos afrontosos em relação à moral e os bons costumes pregados pela cultura hegemônica. Os ladrões e bandidos de A Lira do Delírio não são vilões, mas também não respondem como heróis; a abordagem escolhida por Lima Jr é de um certo distanciamento crítico, como se estivesse simplesmente seguindo essas personagens de um modo asséptico, sem muitas aproximações viscerais.

Durante mais de cem minutos, a obra de Walter Lima Jr é um grande acontecimento marcado por festas e delírios marcados pela incessante busca por um prazer carnal e espiritual. Seus trechos finais, no entanto, parecem marcar um importante movimento narrativo. Primeiramente, um arco dramático, um reencontro tocante, um suspiro de alívio (ou, quem sabe, uma ressaca da festança). Logo em seguida, volta a festa, a curtição; agora, contudo, sai o rosto sobreposto de um homem melancólico e entra a imagem de uma mulher a curtir o carnaval. Mesmo depois de dramas, tristezas e melancolia, a festa continua e sempre continuará. 

A Lira do Delírio (Brasil, 1978)
Direção: Walter Lima Jr.
Roteiro: Walter Lima Jr.
Elenco: Anecy Rocha, Cláudio Marzo, Paulo César Peréio, Antonio Pedro. Tonico Pereira, Otoniel Serra, Guri-Guri, João Loredo, Bené Nunes
Duração: 105 min.

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