No final de janeiro de 2018, eu estava fazendo a famosa “reorganização de estante” que qualquer colecionador faz de tempos em tempos, algumas vezes para tirar obras antigas (para doar ou vender) e substituí-las por versões novas ou por uma versão eletrônica. Particularmente ainda prefiro o volume físico, mas há muitos anos estou à beira de ser colocado para fora de casa pelos meus livros, quadrinhos e outros itens que fui comprando, ganhando e guardando ao longo dos anos. Falta espaço, sempre. E foi nesta versão 2018 da minha reorganização de obras que puxei um livro da minha “prateleira cinematográfica”. O clássico A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin. Dentro, uma dedicatória da minha mãe, datada de fevereiro de 2008. Como o tempo passa! Invadido por um mar de nostalgia, não pude deixar passar em branco a releitura e a escrita da crítica, uma espécie de comemoração de dez anos desde que eu li o meu primeiro livro sobre cinema. Eu tinha 20 anos e ainda achava que voaria em jatinhos pelo mundo afora só com salário de crítico. Na época, ainda não entendia a resposta de Joaquim Pedro de Andrade dada ao jornal Libération, quando lhe fizeram a seguinte pergunta: “por que você faz cinema?“. Se vocês não conhecem este episódio, procurem a música de Adriana Calcanhotto com o mesmo nome. É uma adaptação da cantora para a resposta do cineasta ao jornal francês.
Não é fácil encontrar uma obra que se destina a avaliar o cinema como arte de voz própria, com seus símbolos, significados, modos e motivos de criação e evolução… todos esses, elementos próprios, inerentes e abarcados pela Sétima Arte. Neste livro, o leitor percorrerá a História o Cinema desde os irmãos Lumiére até os anos 1980, e aqui é importante ressaltar que as poucas obras pós-1955 que aparecem no livro são frutos das revisões feitas pelo autor nas republicações que o livro recebeu. A edição que eu possuo (Editora Brasiliense, 2007) vem com um Prefácio escrito por Martin em 1985, comentando sobre o sucesso do livro, sua inserção como instrumento básico nos meios acadêmicos e as discussões levantadas e até modificadas pelo que ele propõe aqui, jamais se esquecendo que o cinema foi ganhando novas camadas, crescendo em tecnologia, disputando espaço com a TV a partir dos anos 1950 e caindo na grandeza milionária (na época) dos blockbusters com a Nova Hollywood, na década de 1970.
A introdução do livro já é um convite e tanto para pensar e reconsiderar o cinema. O autor fala sobre o clássico espírito que se abriu para um número cada vez maior de povos, linguagens e intenções; servindo a todo tipo de propósito, seja para mostrar sentimentos raros à italiana como em O Grito (1957), expor as mudanças sociais e culturais no Japão como em Bom Dia (1959), as variações do amor em um mundo onde tudo cabe, segundo a visão de uma grande cineasta francesa, em As Duas Faces da Felicidade (1965) ou mergulhar em um sonho perturbador e íntimo vindo da mente de dois espanhóis, como em Um Cão Andaluz (1929). Para Martin, o cinema é igualmente arma política (O Encouraçado Potemkin, O Triunfo da Vontade), marketing (ou futilidade por ser uma arte jovem, nascida nascida de uma técnica comum de reprodução mecânica da realidade — lembremos aqui de A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica), espetáculo pura e simplesmente e… verdadeira arte. A visão do autor sobre essa relação entre moeda e status artístico é particularmente notável.
De fato, o cinema é uma indústria, mas há que convir que a construção de catedrais também foi, literal e materialmente falando, uma indústria, pela magnitude dos meios técnicos, financeiros e humanos que exigia, o que não impediu a elevação desses prédios rumo à beleza.
Então a dissertação central do livro começa, na marca feita pelo autor daquilo que podemos entender como linguagem de uma arte englobando imagem e movimento. Uma arte que passou por momentos onde os gestos e as expressões eram as coisas mais importantes — assim como a forte marca teatral em sua composição, pouco a pouco dominada pela técnica da montagem — e, poucas décadas depois, onde a voz, os diálogos profundos e a interpretação visceral de um personagem qualquer passaram a ser os motivos de premiação. Sobre o espetáculo e a matéria-prima para esta nova arte, o autor escreve:
[…] Méliès, enquanto inventor do espetáculo cinematográfico, tem direito ao título de criador da Sétima Arte. […] O caráter quase mágico da imagem cinematográfica aparece então com toda a clareza: a câmera cria algo mais do que uma simples duplicação da realidade. O mesmo se passou nas origens da humanidade: os homens que executaram as gravuras rupestres de Altamira e Lascaux não tinham consciência de fazer arte, seu objetivo era puramente utilitário […] A arte esteve, portanto, inicialmente a serviço da magia e da religião, antes de tornar-se uma atividade específica, criadora de beleza.
Ao mesmo tempo que teoriza sobre o cinema como uma arte e sobre um novo tipo de arte, como o cinema, o autor formula, explica e contextualiza com exemplos de dezenas de filmes, aquilo que compõe este ato de gravar e reproduzir, chamando a nossa atenção para as coisas que encontramos de maneira recorrente em toda e qualquer produção cinematográfica, as caraterísticas fundamentais da imagem fílmica. O autor questiona a banalização, a mudança ou o abandono de certos modelos narrativos clássicos da Sétima Arte, porém, é sagaz o bastante para encarar de maneira evolutiva (e necessária) o papel criador da câmera, os diálogos, o espaço, o tempo, a montagem e os procedimentos narrativos secundários nos filmes, ao longo das décadas. No livro, nada do que diz respeito à manufatura de filmes e ao que eles podem significar ou suscitar, independente dos caminhos visuais tomados, escapa ao autor.
Estabelecendo uma sintaxe artística ao considerar coisas de pontos tão diferentes, como as técnicas primárias (verdadeiras sementes de um monumento) mostradas em Viagem à Lua (1902), O Grande Roubo do Trem (1903) e O Nascimento de Uma Nação (1915) até revoluções ou heranças bem realizadas que assistimos em Acossado (1960), Profissão: Repórter (1975) e O Dinheiro (1983), Marcel Martin faz em A Linguagem Cinematográfica um apanhado histórico e teórico bastante rico, de leitura fácil e muito bem acompanhado de procedimentos narrativos e expressivos do cinema, completado por noções de semiologia que dão caráter realmente filosófico à obra. É difícil não imaginar este livro como uma cartilha vital para qualquer pessoa que deseja escrever, falar, pensar e entender o cinema além da simplicidade de desligar o cérebro e comer pipoca, enquanto vê imagens passando na tela. Este é um estudo clássico sobre a linguagem característica do cinema. Um livro obrigatório para qualquer crítico e cinéfilo que se preze.
A Linguagem Cinematográfica (Le langage cinématographique) — França, 1955
Revisões do autor: 1962, 1977 e 1985
Editora original: Éditions du Cerf
No Brasil: Editora Brasiliense, 1990 e 2007
Autor: Marcel Martin
Tradução: Paulo Neves
Revisão técnica: Sheila Schvartzman
279 páginas