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Crítica | A Liga Extraordinária – Vol. 1

por Ritter Fan
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  • Há spoilers. Se você não leu essa obra, faça um favor a você mesmo e leia. Acesse, aqui, todo o nosso material sobre A Liga.

A Liga Extraordinária, em uma apertada e injusta comparação (mas injusta para os nomes que vêm a seguir), é a Liga da Justiça ou Os Vingadores da época vitoriana em uma genial ideia do mago dos quadrinhos, Alan Moore. Mostrando enorme erudição, o autor simplesmente aproveitou os heróis e anti-heróis da literatura fantástica do século XIX para criar um improvável super grupo que se une para lutar contras as ameaças ao nosso mundo.

Sem trair o espírito dos autores em cujos ombros Moore se apoia, ele retira, cirurgicamente, nomes, personalidades, características físicas e qualidades (ou falta de qualidade) de famosos personagens de Drácula, de Bram Stoker; da série iniciada por As Minas do Rei Salomão, de H. Rider Haggard; de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson; de 20.000 Léguas Submarinas, de Jules Verne e de O Homem Invisível, de H.G. Wells. E isso apenas para formar o coração de sua obra, que vai muito além desses clássicos da literatura. Cada nome de personagem, de rua, cada acontecimento citado diretamente ou por vias transversas como em manchetes de jornal ou ilustrações, cada pequeno detalhe desse conjunto maravilhoso que forma A Liga Extraordinária foi pinçado de um apanhado de obras de diferentes origens, algumas delas até do século XX e outras bem anteriores ao século XIX, quando a ação começa.

Quem conhece Alan Moore sabe disso: ele escreve obras densas em referências quase que querendo (ou querendo mesmo, pouco importa) se gabar de seu conhecimento enciclopédico, de sua erudição. O conceito de A Liga Extraordinária é, literalmente, um playground para um dos grandes nomes atuais dos quadrinhos se divertir e, no processo, nos divertir, nos cutucar e nos provocar. Ler A Liga Extraordinária é um convite a pesquisar, achar e devorar os livros que Moore cita a cada página. Quem não leu, certamente os procurará e quem já leu, lerá de novo.

Assim como Moore, eu gosto de também me achar razoavelmente culto, mas, depois de revisitar A Liga Extraordinária para escrever essa crítica, “só sei que nada sei”.  Se o grupo básico é formado por Wilhelmina “Mina” Murray (ex-esposa de Jonathan Harker, objeto do desejo do Conde Drácula), Allan Quatermain (intrépido caçador e aventureiro do continente africano, basicamente um antepassado de Indiana Jones), Capitão Nemo (preciso mesmo identificar quem é?), Dr. Jekyll e seu alter-ego Mr. Hyde (ou seria o contrário?) e Hawley Griffin, o Homem Invisível, os coadjuvantes começam a navegar por águas mais turvas, mas não menos excitantes. O primeiro a aparecer é o obeso Campion Bond, que, usando Mina Murray, começa a reunir o grupo para uma missão complicada: reaver a “cavorita”, elemento poderoso que permitiria que qualquer vilão criasse “máquinas voadoras” que ameaçassem a soberania da Inglaterra. Mas voltando aos nomes, nenhum leitor achará Campion Bond por aí. No entanto, ele trabalha para o MI-5 e todos nós conhecemos seu tataraneto, que gosta de se apresentar pelo sobrenome antes e de martinis “shaken, not stirred“.

Mas Bond trabalha para o misterioso Mr. M, que Mina tem certeza que é Mycroft Holmes, irmão, claro, de Sherlock, já “falecido” há sete anos quando a história começa. No entanto, mal sabe Mina que, na verdade, Mr. M (longe de ser aquele mágico insuportável de um quadro do Fantástico), é o Dr. Moriarty, arqui-inimigo de Sherlock e da Liga também. E a coisa continua. A primeira missão de Mina junto com Quatermain é capturar Dr. Jekyll/Mr. Hyde e, para isso, eles contam com a ajuda de C. Auguste Dupin, o primeiro detetive da literatura, criado por Edgar Allan Poe e que inspiraria a criação de Sherlock Holmes. Poe criou Dupin antes mesmo que a palavra “detetive” passasse a existir, em sua obra clássica Os Assassinatos da Rua Morgue.

E eu falei em “cavorita” mais acima, não? Pois é esse o elemento criado pelo Sr. Cavor em The First Men in the Moon, de H.G. Wells, personagem esse que faz uma ponta na GN de Moore. E o “sub-vilão”, misteriosamente chamado apenas de “Doutor” (não, não é O Doutor)? Ele é chinês, com direito a quimono, bigode fino e longas unhas. É Fu Manchu da série de romances de Sax Rohmer. Até mesmo a dona da escola/prostíbulo/escola de sadomasoquismo, Rosa Coote vem da literatura: é um personagem “padrão” usado em um sem-número de obras literárias de tons sexuais da era vitoriana.

É absolutamente impressionante a riqueza e densidade literária por centímetro quadrado em A Liga Extraordinária. E olhem que tudo o que eu disse acima não arranha a superfície, pois tem ainda Moby Dick, Guerra dos Mundos e tanta coisa mais que fica difícil mencionar nessa crítica/homenagem (e eu nem teria conhecimento para tanto!).

Em termos de história, Moore não se preocupa em fazer uma trama muito elaborada como em Watchmen, por exemplo. É, basicamente, uma narrativa detetivesca básica que faz os heróis pularem de um lugar para o outro à caça dos inimigos, com as traições padrão do gênero e tudo mais que se pode esperar de uma obra dessa natureza, incluindo muita explosão e morte. Mas Moore fez isso de propósito. O alvo que ele procurava acertar – e acertou com louvor – é a caracterização dos personagens. Mina Murray é uma pré-feminista, chefe do grupo, fria, mandona e com um mistério que não revela. Quatermain é um velho drogado que basicamente desistiu de viver depois de todas as barbaridades que fez e testemunhou. Nemo é um ser vingativo que odeia tudo e todos, com exceção de seu submarino Náutilus. O Homem Invisível é um monstro amoral que usa e abusa de sua “condição”. E, finalmente, aquele que deveria ser o monstro, Dr. Jekyll, é um doce de pessoa, o Bruce Banner do século XIX e até mesmo seu alter-ego tem um norte moral que falta à Griffin.

A interação entre os personagens é quimicamente perfeita, com espaço de sobra para que cada um deles tenha seu quinhão na ação. Nada está lá apenas pelo “efeito de estar lá” ou “por ser bacana usar personagem tal”. Tudo tem uma função e nada é realmente o que parece. Mesmo respeitando o legado dos autores em que se baseou, Moore empresta sua personalidade, sua perversidade ao que escreve, tornando a história absolutamente deliciosa e irretocável.

Mas A Liga Extraordinária não seria a mesma coisa sem a inebriante arte de Kevin O’Neill, que já trabalhara antes com Alan Moore em um controverso arco da Tropa dos Lanternas Verdes. Para começar, O’Neill literalmente recria os personagens do zero, mas, novamente, sempre respeitando sua origem literária. Mina Murray é esquelética, mas aristocraticamente bela. Vemos o porquê de o Conde Drácula ter sido atraído por ela, mas também entendemos as cicatrizes que esse encontro deixou nela. Quatermain, também esquelético, é um fiapo de homem que estaria morto não fosse Mina Murray e sua força para tirá-lo do vício. Nemo tem uma aparência fantástica, remontando a um marajá e à seus ancestrais conforme exatamente determina a obra de Jules Verne. Dr. Jekyll/Mr. Hyde representam a dicotomia entre a humanidade e a selvageria e O’Neill faz o contraste entre alguém doente, fragilizado e um símio enorme, fortíssimo e extremamente à vontade com aquilo que é. Finalmente, o Homem Invisível, quando usa maquiagem ou bandagens é apenas um homem normal, mas sua postura revela camadas e mais camadas sinistras que o artista sabe deixar em cada quadro em que ele aparece.

Mas não são só os personagens que se privilegiam da arte de O’Neill. A Inglaterra vitoriana steampunk por ele conjurada é de fazer o queixo cair e já no início ele diz a que veio, com Mina e Bond aguardando o Náutilus nas docas. Tudo é enorme, com estátuas gigantes, dirigíveis, metais salientes e, claro, quando o famoso submarino aparece, somos surpreendidos por seu design original que fica na mente do leitor assim como o mais famoso design desse navio ficou, o do filme da Disney, de 1954. E, quando a  Liga vai para o distrito de Limehouse, no lado leste de Londres, centro de prostituição, jogos e toda a bandidagem, vemos o bairro emergir com personalidade própria, distinta dos cenários anteriores. O mesmo vale para as incríveis máquinas voadoras de Fu Manchu, digo, do Doutor (Moore não pode usar o nome verdadeiro do personagem por questões de direitos autorais, o que também o limitou em diversos outros frontes gerando boas soluções criativas, aliás), que, assim como o Náutilus, saltam aos olhos por sua beleza ergonômica e originalidade de traços.

Se a Liga da Justiça ou Os Vingadores tivesse 1/20 da qualidade da Liga Extraordinária, o mundo dos quadrinhos mainstream seria povoado por deuses. Se você quer deuses vazios, não os procure no trabalho de Moore. Nele, só há deuses repletos de qualidades e defeitos (principalmente esses últimos) humanos e traços inumanos que muito poucos autores em muito poucos momentos conseguiram criar na Nona Arte.

A Liga Extraordinária – Vol. 1 (The League of Extraordinary Gentlemen – Vol. 1)
Roteiro: Alan Moore
Arte: Kevin O’Neill
Cores: Benedict Dimagmaliw
Letras: Bill Oakley
Publicação original: America’s Best Comics (hoje selo da DC Comics), de março de 1999 a setembro de 2000 (seis edições); outubro de 2002 (1ª edição do encadernado)
Publicação no Brasil: Panini, setembro de 2010 (reedição encadernada)
Páginas: 176 (edição encadernada americana), 420 (edição encadernada brasileira com extras)

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