Os anos 90 pegaram aquilo que “surgiu” nos anos 80 nos quadrinhos mainstream, ou seja, a abordagem mais violenta e exagerada – mas artísticas, vale dizer, de super-heróis – e amplificou ao volume 11 ou mais, criando um estilo próprio que é totalmente, em linhas gerais, estilo sobre substância e, na maioria das vezes, um estilo horroroso. Mas a mesma década viu, na prática, a chegada de Alex Ross aos quadrinhos de super-heróis como um verdadeiro respiro às papagaiadas de Rob Liefeld, Todd McFarlane e companhia, rebobinando um pouco a tendência do heroísmo sombrio e pesado e oferecendo ao público, inicialmente, duas obras-primas inesquecíveis seguidas que recapturaram a essência clássica dos queridos personagens retratados: Marvels, em 1994 e Reino do Amanhã, em 1996. Seu estilo único, de arte pintada fotorrealista com base em fotografias de amigos e modelos que ele mesmo tira e que simultaneamente bebe de gigantes que o antecederam e que ele faz questão de reverenciar, tornou-se imediatamente marcante e inesquecível. E, claro, ajudou bastante que as duas citadas obras têm substância para dar e vender graças aos roteiros de Kurt Busiek e Mark Waid, respectivamente, ainda que o que realmente as tenham transformado em marcas na História dos Quadrinhos tenha sido a irretocável e, sob vários aspectos em HQs, inovadora arte de Ross.
A Lenda do Reino do Amanhã (minha tradução direta de The Legend of Kingdom Come) é um documentário produzido com base em campanha de 2024 de financiamento coletivo no Kickstarter e que, como o título indica, gira ao redor da graphic novel em questão, contando sua origem. No entanto, Reino do Amanhã, na verdade, é uma porta de entrada, um chamariz para o verdadeiro objetivo da obra dirigida por Remsy Atassi, que é o de biografar Alex Ross em um estilo padrão de obras do gênero, ou seja, que é o de homenagear, elogiar e elevar o biografado, em um documentário feito por fãs para fãs. Portanto, não se deve espera nada complexo, nada polêmico e nada que seja menos do que entrevistas variadas e sempre elogiosas, em uma fusão entre “história de vida” e “história da HQ do título”, com especial destaque para a importância e o legado de Ross e de sua criação para a indústria de quadrinhos. Pode-se classificar de uma obra chapa branca, sem dúvida alguma, mas ela, em nenhum momento, propôs-se a fazer algo diferente disso, algo que já fica evidente pelo simples fato de que foram os fãs de Ross que voluntariamente financiaram boa parte do projeto.
A estrutura do documentário é comum e básica, começando com Ross desenhando o Superman e partindo desse ponto para voltar um pouco no tempo e contar o que o inspirou enveredar pelo caminho de desenhista de quadrinhos e o porquê de seu estilo realista, marcando seu ingresso na indústria com seu trabalho em Exterminador do Futuro: Terra em Chamas, em 1990, e não demorando para engatar em Marvels que, então, evolui para Reino do Amanhã. Vemos e ouvimos Mark Waid falar da gênese do projeto e de como ele, também então razoavelmente no começo de sua carreira, ingressou no projeto, muito mais por ser um verdadeiro fã de quadrinhos, com conhecimento quase enciclopédico, semelhante ao caso de Ross, do que por qualquer outra coisa. E outros grandes nomes dos quadrinhos também aparecem para tirar o chapéu para Ross, especialmente Todd McFarlane, Gene Ha, Paul Dini, Amanda Conner, Bill Sienkiewicz, Jimmy Palmiotti e as irmãs Julie e Shawna Benson, todos apresentando-se em câmera, na moda antiga, algo que só realmente funciona uma única vez, quando Sal Abbinanti, um dos produtores da obra e agente tanto de Ross quanto de Sienkiewicz, diz que ele é o Capitão Marvel, algo que deve ser levado na literalidade, já que ele servira de modelo ao herói hoje em dia rebatizado de Shazam.
Aliás, as entrevistas com os “modelos” usados por Ross no início de sua carreira nos quadrinhos – que também foi o ponto mais alto dela, uma verdadeira raridade – divertem mais por elas servirem de trampolim para o detalhamento da técnica do artista, valendo especial destaque para a breve e simpática aparição de seu pai, Clark Ross, que se tornou famoso por servir de base para Norman McKay, o personagem que observa os eventos da graphic novel. Senti falta, porém, de mais detalhamento, de um mergulho mais profundo justamente nesse aspecto que é vital ao documentário. Sim, nós vemos Ross desenhando, nós vemos os rostos “desconhecidos” que foram as bases para os personagens dos quadrinhos pelo pincel do desenhista e sim, nós vemos várias das fotos – algumas hilárias – usadas nesse árduo trabalho, mas tenho para mim que o documentário poderia ter ido muito além, abordando referências de cenários, inspirações de obras anteriores e efetivamente mostrar o artista indo além do busto do Superman que ele desenha no começo do longa. Havia claramente mais espaço para isso e, ainda que isso seja verificável nos diversos extras oferecidos pela produção no site do lançamento (e também no Blu-Ray que, na data de publicação da presente crítica, ainda está sendo enviado a quem optou pela mídia física, como foi meu caso), eles não fazem parte do documentário em si e, portanto, não podem fazer parte da análise que me propus a fazer.
Mesmo com a pegada de homenagem, de reverência a um grande artista, como aconteceu no documentário dedicado a Mike Mignola também produzido, em parte, por meio de uma campanha do Kickstarter e, vamos combinar, como acontece com boa parte de propostas semelhantes, a grande verdade é que A Lenda do Reino do Amanhã oferece aos fãs de quadrinhos em geral e de Alex Ross em particular um bom mergulho – que definitivamente poderia ter sido mais profundo – nas aspirações que o levaram a escolher esse seu caminho e às inspirações que o levaram a desenvolver sua magnífica técnica que, em uma década caótica e cínica para os quadrinhos pelas grandes editoras dos EUA, resgatou o espírito dos super-heróis da Era de Ouro.
Obs: O documentário foi liberado digitalmente para quem contribuiu para a campanha do Kickstarter em fevereiro de 2025, mas, em respeito ao período de embargo para críticas que acabou em 22 de abril de 2025, nossos comentários só foram publicados hoje.
A Lenda do Reino do Amanhã (The Legend of Kingdom Come – EUA, 2025)
Direção: Remsy Atassi
Com: Alex Ross, Mark Waid, Todd McFarlane, Paul Dini, Amanda Conner, Sal Abbinanti, Brian Pulido, Gene Ha, Jimmy Palmiotti, John Siuntres, Julie Benson, Shawna Benson, Rich Koz, Tony Akins, Bill Sienkiewicz, Clark Ross
Duração: 77 min.