Quando comecei as críticas de A Lenda de Korra, a proposta de desmistificação e progresso do que vimos em Avatar – A Lenda de Aang se mostrou bastante clara. A estética tecnológica, o caráter político da história e a narrativa contida na República da 1ª Temporada é praticamente uma afronta aos fãs acostumados a um universo naturalista com uma trama de aventura global. Eu simplesmente adoro essa linguagem de inovação de Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko para a franquia. Ao longo da série, porém, a proposta foi se transformando de acordo com o arco de Korra e a recepção do público, conforme a 2ª Temporada mergulha no lado espiritual que sempre teve menos foco que a parte Elemental nos livros anteriores, assim como o Livro Três retorna à clássica estrutura da série do Aang.
No entanto, mesmo com tantas mudanças criativas, algo se manteve nas temporadas anteriores: A Lenda de Korra é mais sobre o enredo, como ele impacta esses personagens e universo, e menos sobre os personagens em si, completamente inverso à série original. O terceiro livro é até mais fora da curva nessa afirmação, especialmente pensando na estrutura da jornada global, mas continua sendo voltado para uma trama com início, meio e fim com Zaheer e a construção da Nova Nação do Ar. Até porque também é o ano com menos desenvolvimento pessoal de Korra, já que a Avatar funciona como um fio condutor dos dois núcleos principais.
Livro Quatro: Equilíbrio faz outra alteração de curso para a obra. A quarta temporada é o ano mais pessoal e com o maior desenvolvimento do arco dramático da protagonista. Primeiro que o roteiro faz algumas correções de trajetória dramática no desfecho do ano anterior, terminando em uma nota trágica e derrotista. Isso provém espaço para o quarto ano lidar com consequências e traumas de eventos passados, algo desesperadamente necessário em uma série que está sempre dando um restart dramático e narrativo no final de cada temporada – até comecei a refletir melhor sobre as críticas de alguns leitores em relação a Korra ter seus poderes restabelecidos no final do primeiro livro.
O que se segue, então, é um emocionante e introspectivo estudo de personagem da Avatar, momentos de protagonismo em que a animação demonstra mais força do que com dinâmicas grupais, já que o elenco coadjuvante não tem o carisma ou profundidade da trupe do Aang. Falando no carequinha, o arco do personagem é claramente focado no amadurecimento forçado de uma criança que não quer ou está pronta para suas responsabilidades. Já Korra anseia pelo papel do Avatar, mas tem dificuldade em descobrir como exercê-lo, resultando na sua impaciência e agressividade – continuo achando a escolha de um ambiente (guerra para Aang e política para Korra) que afronta a personalidade do Avatar uma sacada narrativa genial dos criadores.
Dessa forma, o quarto livro coloca Korra em uma posição mais vulnerável, suscetível a mudança e com uma jornada pessoal sem atalhos como ocorreu nos atos finais das duas temporadas iniciais. Os primeiros episódios fazem um tremendo trabalho de situar o espectador desse lado de autodescoberta em uma narrativa melancólica de isolamento, contando ainda com algumas sequências oníricas que mexem com o psicológico da personagem. O uso inteligente de Toph como mentora – muito melhor representada que os cameos de luxo da Katara e Zuko – proporciona alguns dos melhores aprendizados da Avatar, agora com uma tutora perfeita para sua personalidade irritada.
Korra precisa passar por reabilitação, surras, vergonha pública, confronto com sua ausência e até mesmo retirar o restante do veneno do seu sistema sozinha. Poucas vezes a personagem foi posta em uma posição de insegurança e solidão como ocorre no ato inicial desta temporada. E mesmo quando ela começa a participar como peça central contra o conflito ditatorial de Kuvira, a série mantém a protagonista lutando menos contra um inimigo inalcançável, e mais com seus demônios internos que criam obstáculos pessoais. O Avatar é, em termos coloquiais, roubado, então é substancialmente mais interessante quando o roteiro deixa de criar vilões cada vez mais impossíveis e busca no conflito interno o drama principal. De certa forma, o arco dela aqui lembra bastante o de Aang após ter sido lesionado por Azula.
Saindo da parte micro e individual da temporada, também há de se notar um trabalho cuidadoso na trama macro para finalizar o discurso político da série. A Lenda de Korra sempre foi sobre equilíbrio político. Essa temporada nos apresenta a vilã da vez em Kuvira, ex-auxiliar de Suyin, que comanda com mão de metal (he, he) a reestruturação da Nação da Terra num cenário temporariamente pós-monárquico. Do fascismo, anarquismo, monarquia, até a ditadura de Kuvira, Korra nunca enfrentou uma guerra global ou nações inteiras, e sim combateu ideologias deturpadas e regimes políticos abusivos. O diálogo do príncipe Wu sobre dissolver a coroa é simplesmente poético para uma Avatar que passou 4 temporadas lutando pela democracia.
Como uma experiência contida, Livro Quatro: Equilíbrio está basicamente no mesmo patamar de Ar e Mudança para mim, mas como unidade e finalização da série, a conversa muda de foco. Afinal, não seria A Lenda de Korra se não houvesse falhas a serem pontuadas, certo? Vou parecer (novamente) disco arranhado, mas os roteiristas simplesmente não sabem lidar com o elenco coadjuvante dessa obra. Depois de desenvolver espetacularmente os arcos de Tenzin e Lin no ano anterior, ambos personagens basicamente não têm presença de tela na temporada final. Dá para colocar Jinora, Kai, Mako e Asami no mesmo bolo de indivíduos que ficam totalmente jogados em um enredo que não sabe lidar com tantas personalidades, e muito menos como concluir dramas para personagens que nunca tiveram um arco propriamente delineado.
Chega a ser cômico como Mako passa a temporada como órbita humorística de Wu, enquanto Bolin recebe um tratamento minimamente melhor com a desilusão ideológica e o romance terno com Opal. Asami novamente perambula a temporada sem um pingo de individualidade ou característica perceptível, novamente resignada ao rápido drama com seu pai. É possível criar o argumento de um “sacrifício necessário” de tempo de tela dos coadjuvantes para termos o foco em Korra, mas essa justificativa é destruída pelo fato de que Varrick – o inútil e desinteressante Varrick!! – recebe mais minutagem que toda essa galera importante. E tudo isso para o inventor ter um desfecho feliz para um relacionamento abusivo. Simplesmente indesculpável o descarte de tantos personagens intrigantes para o alívio cômico ter sua superficial subtrama de redenção.
Há outros problemas de abandono, como o núcleo espiritual escanteado desde o final da 2ª temporada e a péssima resolução para o relacionamento do quarteto principal – apesar de adorar o desfecho “implicitamente explícito” do romance entre Korra e Asami, pois mesmo com a empresária sendo propaganda de água de salsicha ao longo da série, é um final que encapsula muita coragem em um show que sempre prezou por representação feminina. Por fim, A Lenda de Korra não entrega um adeus com a mesma perfeição de Aang, mas acho que a série nem poderia. A obra não foi criativamente pensada como unidade, passando por várias alterações de linguagem e mudanças abruptas de abordagem para núcleos e personagens. Mas no meio de todo esse desequilíbrio, a temporada final, tal qual seu título, consegue equilibrar e concluir com esmero seu dois fatores mais importantes: a parte política, contando com uma vilã imponente e um clímax que foi de um divertido Mecha-Elementar até uma resolução harmoniosa; e, claro, a nossa querida Avatar. Dentro de suas imperfeições, tanto a série quanto a protagonista, Korra conquistou, emocionou e, o mais importante, aprendeu sobre esse manto de difícil peso. Assim como o carequinha engraçado e pacífico, a jovem impulsiva vai deixar saudades.
A Lenda de Korra – Livro Quatro: Equilíbrio (The Legend of Korra – Book Four: Balance) | EUA, 2014
Criado por: Michael Dante DiMartino, Bryan Konietzko
Direção: Colin Heck, Ian Graham
Roteiro: Michael Dante DiMartino, Bryan Konietzko, Tim Hedrick, Joshua Hamilton
Elenco: Zach Tyler, Mae Whitman, Jack De Sena, Dee Bradley Baker, Dante Basco, Mako, André Sogliuzzo, Mark Hamill, Greg Baldwin, James Garrett, Jason Isaacs
Duração: 310 min. (13 episódios)