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Crítica | A Lenda da Flauta Mágica (1972)

Embora tematicamente carregado de vida, Demy se mostra insípido no tom do filme.

por César Barzine
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Assim como a Disney possui, em sua história, a tradição de suavizar os quase macabros contos dos Irmãos Grimm, transformando histórias obscuras em produções infantis, Jacques Demy também cria um processo em busca do lúdico partindo de um material dos irmãos alemães não tão colorido assim. Tanto o estúdio americano quanto o cineasta francês — desta vez em um longa britânico — já retrataram nas telas o conto O Flautista de Hamelin, dessa  icônica dupla de escritores. A Disney realizou um curta-metragem cujo desfecho se dá com a chegada de muitas crianças a uma espécie de paraíso feito de doces — à la João e Maria. É um final dos mais açucarados possíveis, embora um tanto ambíguo. Quanto ao longa em questão, quem dera se tivesse alguma ambiguidade; não há nem o tom sombrio nem o completamente doce, assim como não há algo de minimamente dúbio. Trata-se de um final insosso, ao qual o espectador sente apenas indiferença — assim como no restante de A Lenda da Flauta Mágica.

No entanto, o conto citado não é a primeira versão dessa história, e sim o boato dela mesma existente desde a época em que se passa, no século XIII. O que está presente na lenda, no conto, no curta e no longa é que, durante a baixa Idade Média (1349 no filme), a cidade alemã de Hamelin vivia atormentada pela multidão de ratos lá presentes. Isso até a chegada de um “flautista mágico” que, sob a promessa de recompensa financeira do prefeito, conseguiu conduzir todos os ratos para fora da cidade apenas tocando sua flauta. Em seguida, ao receber um calote, fez o mesmo com as crianças em forma de vingança, sumindo com todas elas da comunidade. 

Não é a primeira vez que Demy trabalha com os moldes dos contos de fadas, ele já o tinha feito em suas mágicas obras dos anos 60. Porém, essas se passavam na contemporaneidade e tinham um delicioso tom moderno; enquanto este filme se passa no medievo e é carente de um tom harmônico. Demy tenta, se esforça; afinal, é um filme maneirista com o visual chamativo, mas nunca cria uma atmosfera de verdade, um universo autêntico ao qual tinha potencial. É um conto de fadas que começa suave e logo torna-se cinzento sem a intenção de assim sê-lo. Boa parte desse clima deslocado se deve à mise-en-scène também fora dos trilhos. Na direção de arte, o figurino é uma das coisas mais pavorosas possíveis. Chamam bastante atenção os vestidos e, principalmente, os chapéus vultosos, de tamanho e aparência quase bizarros. Tudo é extremamente feio, o que, em companhia aos cenários, dão um aspecto farsesco, meio teatral. Esse efeito, aparentemente, combina com a proposta de algo mais lúdico; contudo, na prática, é uma abordagem que desboca somente no afastamento do público.

Ao lado desse fator lúdico, existe um lado obscuro, no entanto, não no estilo dos Grimm, num apelo ao infortúnio e à atmosfera sombria. O obscuro está no retrato da religião, que é burramente problematizada, menos pelo seu conteúdo em si do que pela sua superficialidade. O roteiro adota uma crítica absolutamente genérica, tão vazia que beira o  constrangedor. Como ele se passa na Idade Média, temos aquela clássica paisagem da igreja como instituição corrupta e retrógrada preguiçosamente reproduzida. Não existe nada além do que o espectador já pode prever. As autoridades religiosas são apresentadas de forma caricata numa tentativa de fazer um potente confronto religioso, que soa nada menos que forçado e simplista.

A verdadeira espiritualidade do filme não está na religião, e sim na música. A flauta do protagonista (sem nome) vai do encanto a feitos sobrenaturais. O ambiente medieval, apesar da representação pejorativa e de uma presença ameaçadora (dos ratos) em toda a cidade, não chega a ser dominado por um clima soturno. Existe certo ânimo, um toque vívido presente e que é carregado principalmente pela figura do flautista. O personagem é atuado por um músico real, Donovan, dono de um estilo sonoro que vagamente remete ao do filme. Pena que este segundo estilo nem de longe faz jus à qualidade de seu trabalho fora das câmeras. 

História, religião e, de certa forma, política formam uma mesma coisa aqui; como antítese a isso, existe a arte em seu modo idílico e contato com a paz interior. Tudo isso pode parecer lindo e inspirador, mas acaba sendo bem desestimulante neste filme. Nem o bem e nem o mal são atraentes ao espectador. Os enredos paralelos, como o do alquimista e o do jovem apaixonado por uma donzela, não são muito diferentes. Nessa onda, o diretor posa de falso humanista e desanda quanto à forma: tenta trazer lirismo e magia de maneira artificial, bagunçada e vazia.

The Pied Piper (EUA, Reino Unido – 1972)
Direção: Jacques Demy
Roteiro: Jacques Demy, Andrew Birkin, Mark Peploe, Jacob Grimm, Wilhelm Grimm
Elenco: Donovan, Diana Dors, David Leland, Donald Pleasence, Jack Wild, John Hurt, Michael Hordern, Peter Vaughan, Roy Kinnear
Duração: 90 minutos.

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