Não tenho dúvidas sobre a ironia de a premiada O Chinês Americano, graphic novel de 2006 de Gene Luen Yang (posteriormente responsável pela criação do Super-Man da China) ter demorado tanto tempo para ser adaptada para o audiovisual, pois é evidente que uma das obras pioneiras dos quadrinhos sobre identidade e preconceito lidando com personagens de origem ou ascendência oriental precisou esperar que houvesse demanda por uma história desse naipe. Reunindo três nomes do elenco de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo em papeis coadjuvantes – Michelle Yeoh, Ke Huy Quan e Stephanie Hsu – a primeira temporada da série que, em português, ganhou um título completamente sem graça, lida com o adolescente americano de pais chineses Jin Wang (Ben Wang) que, em meio ao seu processo de se adaptar à vida em uma escola de maioria branca, afastou-se de seus verdadeiros, mas menos sociáveis amigos, é “atrapalhado” pela repentina chegada de Wei-Chen (Jimmy Liu), chinês pelo menos em tese nascido na China.
Esse em tese fica por conta do fato que Wei-Chen, na verdade, é filho do mitológico e poderoso Sun Wukong, ou Rei Macaco (Daniel Wu), que vive no Céu juntamente com outros deuses do panteão chinês, e que foge para a Terra com um poderoso bastão do pai por ter sonhado que seu destino era encontrar o misterioso Quarto Rolo, objeto que evitaria uma guerra entre o Niu Mowang, o Touro Demônio (Leonard Wu) e o Imperador de Jade (James Hong em breve ponta). Pode parecer complicado, mas a grande verdade é que não é, mesmo para quem não faz ideia quem é o Rei Macaco e a mitologia ao redor que começou no famoso Jornada ao Oeste, publicado no século XVI e que é um dos alicerces da literatura chinesa. O trabalho de Kelvin Yu, responsável pelo desenvolvimento da série, foi o de usar a graphic novel de Yang como ponto de partida, como verdadeira inspiração, pois, o que vemos em tela é substancialmente diferente e bem mais expansivo do que o que foi colocado no papel. No entanto, é importante deixar claro que isso não é, de forma alguma, um aspecto negativo de A Jornada de Jin Wang. Muito ao contrário, diria que a adaptação de Yu consegue manter intacto o espírito da obra original, grande parte de sua estrutura e, ao mesmo tempo, transpondo o material para uma mídia e um formato com exigências completamente diferentes.
Na HQ, há três histórias aparentemente desconectadas que só são verdadeiramente reunidas ao final, uma realista lidando com Jin Wang e Wei-Chen na escola, outra mitológica lidando com a origem do Rei Macaco e, finalmente, uma metalinguística em que vemos uma sitcom com um personagem chinês negativamente estereotipado. Na transposição para o audiovisual, a primeira história é a central – como nos quadrinhos – e ela é imediatamente alimentada por um aspecto da segunda história, que é justamente a jornada de Wei-Chen, filho do Rei Macaco, na Terra ao lado de Jin Wang que ele tem certeza que é ou será seu guia. A fusão imediata das duas primeiras histórias era, em minha visão essencial para que a série funcionasse e é exatamente isso que o showrunner faz logo ao final do primeiro episódio, sem manter o suspense por muito tempo e já conectando Wang e Chen de maneira mais umbilical do que só uma inicialmente hesitante amizade. A terceira história – a da sitcom – é brilhantemente mantida na série, com a ressuscitação, via redes sociais, de uma sitcom de 30 anos antes chamada Beyond Repair protagonizada por um atrapalhado e estereotípico Freddy Wong, chinês que fala com sotaque carregado e que é vivido por Ke Huy Quan em dois momentos, já que ele aparece também no presente de A Jornada de Jin Wang, ainda que em papel apenas paralelo à narrativa principal, mas que é extremamente importante para a contextualização da série.
Dando corpo à história, o drama de Jin Wang, que sofre do que podemos chamar de micro-agressões de contornos racistas e que ele enfrenta mergulhando mais ainda em sua renegação de sua origem chinesa e mergulho na visão ocidental das coisas, passando por amigos, namorada e a apreciação do futebol não por exatamente amar o esporte, mas para servir de veículo à sua absorção pelos demais, é paralelizado pelo drama de seus pais, Christine (Yeo Yann Yann) e Simon Wang (Chin Han), a primeira uma dona de casa que cobra de seu filho e de seu marido tudo o que pode cobrar em termos de ascensão estudantil e profissional e o segundo um trabalhador já cansado e adaptado ao cotidiano do qual não vê saída. O desenvolvimento da dupla veterana ao longo dos roteiros, além de suas respectivas atuações são, diria, o ponto alto da série, o que só amplifica a história de amadurecimento razoavelmente padrão de Jin Wang que se vê preso entre pais que não parecem lhe oferecer grandes horizontes e uma vida social em que ele precisa justamente deixar os pais e tudo o que eles representam de lado. Essa dinâmica entre os três é a razão de ser de A Jornada de Jin Wang.
Mas não que o lado abertamente de fantasia sobrenatural não seja divertido, pois é, e muito. O uso generoso de wire-fu para as lutas marciais, que nos remete aos filmes setentistas de kung-fu, assim como o trabalho de maquiagem ótimo, porém propositalmente fugindo do hiperrealismo – porque isso é desnecessário e não acrescenta nada à história para além de um orçamento mais alto que foi investido em roteiros de qualidade e contratação de bons atores – emprestam ótimas visões da cultura chinesa que os trabalhos de direção usam ritmadamente, tornando visualmente fácil a fusão entre ocidente e oriente, algo que, aliás, a série se esmera em fazer do começo ao fim. A presença de Michelle Yeoh no elenco em um papel secundário, mas importante como a Deusa da Misericórdia que ajuda Wei-Chen em sua missão é um bônus, ainda que o papel e o trabalho de Ke Huy Quan sejam muito mais nuançados, interessantes e, em última análise, melhores, ainda que abaixo da já citada dupla veterana que vive os pais do protagonista.
A Jornada de Jin Wang revela-se como uma bem-vinda surpresa. Não só é uma adaptação astuta de uma graphic novel bem difícil de ser transposta para o audiovisual com atores reais, como consegue conciliar drama adolescente na linha coming of age com fantasia mitológica de qualidade e uma abordagem adulta sobre temas relevantes para nossa sociedade plural. É uma pena somente que, no lugar de produzir uma minissérie, Kelvin Yu – talvez por pressões superiores – tenha se curvado a criar um desnecessário cliffhanger para uma eventual segunda temporada. Pelo menos o primeiro ano, em termos de arcos narrativos, é consideravelmente autocontido.
A Jornada de Jin Wang – 1ª Temporada (American Born Chinese – EUA, 24 de maio de 2023)
Desenvolvimento: Kelvin Yu (baseado em graphic novel de Gene Luen Yang)
Direção: Destin Daniel Cretton, Dinh Thai, Dennis Liu, Peng Zhang, Johnson Cheng, Lucy Liu, Erin O’Malley
Roteiro: Kelvin Yu, Charles Yu, Vali Chandrasekaran, Warren Hsu Leonard, Aaron Izek, Lawrence Dai, Kai Yu Wu, Lana Cho
Elenco: Ben Wang, Yeo Yann Yann, Chin Han, Ke Huy Quan, Jimmy Liu, Sydney Taylor, Daniel Wu, Michelle Yeoh, Mahi Alam, Stony Blyden, David Bloom, Justin Jarzombek, Brian Huskey, Larry Bates, Sophie Reynolds, Josh Duvendeck, Leonard Wu, Ronny Chieng, Rosalie Chiang, Brian Le, Lisa Lu, Poppy Liu, James Hong, Jimmy O. Yang, Stephanie Hsu
Duração: 283 min.