Os dois contos deste compilado fazem parte do volume Contos Escolhidos, lançado originalmente por Medeiros e Albuquerque em 1907. A edição a que eu tive acesso, porém, foi a 2ª edição aumentada deste livro, lançada pelas Edições Lux, em 1º de setembro de 1924. Por se tratar de uma obra rara, minha consulta aconteceu presencialmente, na sala reservada da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Para ter acesso a obras desse tipo, você deve fazer a reserva pelo site da prefeitura da cidade. A consulta para ver se o livro está disponível para empréstimo ou leitura presencial você faz aqui. Já o agendamento do que você deseja fazer, pode ser feito aqui. Demora até quinze dias para a sua solicitação ser atendida, e então você recebe um e-mail pedindo para escolher dia e horário para a consulta. Feito isso, em algumas horas virá a confirmação e é só ir à biblioteca no dia e horário marcados.
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A Joaquina da Onça
A trama começa, como vocês podem ver no trecho em destaque na imagem dessa postagem, com um narrador falando sobre uma viagem que ele está fazendo. É uma cavalgada pela mata, que começa ainda de madrugada e avança pelo começo do dia, após o raiar do Sol. Os dois homens (o narrador e seu companheiro, um vaqueiro cearense “de rosto largo, olhos maliciosos, danado no violão“) encontram algumas dificuldades pelo caminho, porque a geografia da mata não é nem um pouco fácil. O autor não dá maiores informações sobre essa viagem, não fala muito das vidas dos personagens. O texto dá ao leitor a sensação de aprofundar-se na mata, de presenciar a aventura em direção a algum lugar misterioso. No meio do caminho, o vaqueiro cearense, que serve de guia para o narrador, vai cantando. O conto mostra as três canções que ele entoa durante o caminho, e eu as reproduzo abaixo:
A estrada que vai apara a vila
todo o mundo sabe bem,
mas só eu sei o caminho
do coração do meu bem.
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O rio bate nas pedras,
a pedra fica parada…
passa o dia, passa o ano:
não esqueço minha amada.
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Naquela manhã de julho,
bem-te-vi, tu bem me viste…
passarinho, tu não sabes
porque é que eu estava triste.
No meio dessa viagem, em um lugar onde a vegetação está um pouco mais aberta, os homens ouvem uma terrível gargalhada vinda de cima de uma das árvores. O leitor fica tenso. A preparação para este momento nos dá a sensação de que algo ruim está para acontecer, e imaginamos uma bruxa, só de considerar aquilo que o narrador diz sobre a gargalhada. Então o vaqueiro olha para cima e vê uma mulher, portando-se de maneira animalesca, rindo, olhando para baixo. O cearense diz apenas que “é a Joaquina da onça” e segue seu caminho, passando a explicar ao companheiro o que aconteceu: em uma fuga desesperada de uma onça, com o filho no braço, passando por aquela região, a Joaquina deixou cair o filho, que a onça levou embora e devorou. Isso fez com que ela enlouquecesse e ficasse ali na floresta, vivendo de maneira selvagem, rindo de maneira demoníaca de cima das árvores. Um cenário tocante que mostra como uma mulher negra sofreu um grande trauma e acabou enlouquecendo. O conto não diz, mas imaginamos que ninguém foi ajudá-la nesse meio tempo, então ela vive comendo raízes e frutos, como diz o vaqueiro. Uma situação triste e terrível, ao mesmo tempo.
A Joaquina da Onça (Brasil, 1907)
Autor: J.J. C.C. Medeiros e Albuquerque
Publicação original: Contos Escolhidos
Editora original: Livraria B.L. Garnier
10 páginas
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O Homem Que Morreu
Texto muito inteligente de Medeiros e Albuquerque, mesclando diferentes formas de exposição narrativa; duas de jornal, uma na pena de um narrador que observa de longe a situação (em caráter oficial, ao final do conto) e outra, a principal, através da carta que o protagonista escreve para a amada Leonor, sua noiva. Como se vê acima, ele já começa a missiva falando que está em um hospício. E essa internação aconteceu porque ele atacou um homem na rua, de maneira repentina e consideravelmente violenta. A pessoa não morreu, mas o ataque foi um choque para todos, e como já havia uma motivação para isso, acabaram recolhendo o homem, porque ele representava um perigo para si, e para os outros.
Assim como a história de Joaquina, estamos aqui diante de uma loucura que vem por conta de uma fatalidade, talvez se aliando a um problema que o personagem já tinha (a epilepsia), embora isso não fique muito claro. Pelo que eu entendi do conto, porém, me parece um comportamento que ele passou a ter após o acidente que teve, uma terrível queda durante uma viagem. Ainda no momento em que acorda — e tudo isso sabemos a partir de sua carta para Leonor — ele diz à freira enfermeira que o assiste, que de fato morreu, foi até os céus, viu Deus, mas o Criador deu bronca no Anjo da Morte, porque não era para ele estar lá, não era a hora dele morrer ainda. O Anjo então atravessou vários caminhos e trouxe novamente a alma do protagonista para o corpo. E é aqui que começa o seu martírio. Ele quer contar para todo o mundo o segredo do que viu nos céus. Mas quando tenta fazer isso, o Anjo lhe enfia um estilete no cérebro e ele começa a sentir muita dor (estes são os momentos de epilepsia).
Também é dada uma explicação para o ataque ao homem na rua, que o levou a ser internado. O protagonista diz que não atacou homem nenhum. Ele atacou o Anjo que o estava maltratando, impedindo que ele dissesse as 10 palavras que era o segredo da vida. Ao final do texto, eu estava com o coração partido. A escrita de Medeiros e Albuquerque consegue chegar a momentos de muita intensidade em poucas linhas, de modo que todo o peso interpretativo da história é conseguido sem muito esforço pelo autor. O leitor entende as muitas possibilidades de discussão aqui, e mais uma vez ressurge a conversa sobre a “possível lucidez loucura“. Essas pessoas estão apenas alucinando, vendo coisas, ou realmente aquilo que dizem ver, está acontecendo, mas em uma dimensão inacessível aos nossos olhos? Como o “problema central” aqui é religioso, cristão, a coisa é ainda mais interessante. Impossível não ficar com dó do narrador (o médico quer fazer trepanação nele), que termina o conto em um terrível ataque epilético, desta vez, ao tentar escrever as palavras na carta.
O Homem Que Morreu (Brasil, 1907)
Autor: J.J. C.C. Medeiros e Albuquerque
Publicação original: Contos Escolhidos
Editora original: Livraria B.L. Garnier
15 páginas