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Crítica | A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida

Conquistando aos poucos.

por Luiz Santiago
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Publicado originalmente em folhetins, nas páginas do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 1905, A Intrusa teve a sua versão compilada original apenas em 1908, pela editora Francisco Alves, chegando ao público num momento de muito prestígio na carreira da escritora Júlia Lopes de Almeida, após a excelente recepção de seu romance anterior, A Falência (1901) e de seu impactante livro de contos, Ânsia Eterna (1903). Como é comum encontrar na literatura de Júlia Lopes, existe aqui um retrato social repleto de marcas de seu tempo, e com isso quero dizer que vamos encontrar, nessas páginas, coisas que vão de críticas ao patriarcado do início da República Velha até expressões e situações racistas expostas com imensa naturalidade. Ou seja, ao mesmo tempo que se coloca à frente de seu tempo em diversos aspectos, a autora e sua produção artística são filhas de seu tempo e também reproduzem aquilo (que de pior) tinham como base social.

A chegada de alguém à vida de outra pessoa, abalando convicções e mudando o rumo de uma vida, aparecera em outro livro da escritora, A Viúva Simões (1897), só que com os papéis de gênero trocados, se comparados aos de A Intrusa. Aqui, a viuvez é a de um homem, o advogado Argemiro, que passa os seus dias em uma rotina carregada, com um criado desdenhoso e irresponsável, finanças extrapoladas, cheiros ranhosos e desorganização por toda a casa, e uma filha (Glória) que mora no campo com a avó, visitando-o aos finais de semana. A figura que nos é pintada de Argemiro é a de um homem que desistiu de viver como “alguém digno de sua classe“. A autora dá a ele uma aparência desleixada e faz com que imaginemos a sua casa como um palacete arquitetonicamente admirável, mas desorganizado e sujo, apesar de continuar sendo frequentado por amigos influentes, especialmente o padre Assunção.

A mulher que ganha destaque no enredo é D. Alice, uma jovem pobre que atende a um anúncio de jornal colocado por Argemiro. Ela assume o cargo de governanta da casa, e começa um processo interessantíssimo de revolução dos hábitos, odores, percepções e emoções dos habitantes da casa e dos que a frequentavam. É em torno dessa “intrusa” que a trama gira, e é muito interessante ver como os muitos preconceitos de classe e de gênero são explorados pela autora, especialmente na voz da sogra de Argemiro e avó de Glória, que quer manter a todo custo a memória da filha à vista e acha que D. Alice está roubando-lhe a neta e enfeitiçando o genro — que deveria, segundo ela, permanecer fiel à promessa de nunca mais se casar. Uma promessa feita por ele no leito de morte da esposa, que partiu jovem demais.

É muito satisfatório acompanhar esses personagens mudando suas opiniões a respeito de Alice e ver como a jovem governanta, muitíssimo bem educada e com uma história de vida tocante, consegue colocar a alma na administração da casa, tornando-a um lar. Sua antagonista, a velha mãe de Maria, ex-dona da casa, vai se tornando um peso imenso na história, no bom sentido da afirmação. Por mais insuportável que seja essa personagem, o leitor quer vê-la mais vezes em cena, infernizando a vida de todos, cometendo suas injustiças e destilando ódio e preconceito com base em suas crenças, misticismos e pensamentos tortuosos sobre a vida e as pessoas. Na outra ponta, os homens e a menina Glória, de 11 anos, alteram a sua visão e os seus hábitos (para melhor) a partir do momento em que D. Alice entra em suas vidas. Por isso mesmo, o leitor sabe que há uma grande probabilidade de o lado fraco da corda vencer a disputa. Mas a autora sustenta o antagonismo e a dúvida até as últimas páginas.

Enquanto desenvolve seu enredo, Júlia Lopes de Almeida usa muito bem o tempo a seu favor. É importante lembrar que o livro surgiu de uma publicação em folhetins de jornal, portanto, em um formato diferente do encadernado. Mas é inegável que existe uma imensa diferença de qualidade e de coesão narrativa entre o final da obra e tudo o que veio antes dele. Nas últimas páginas, aparecem sequências deslocadas que expandem a vida de um dos coadjuvantes (o padre Assunção) e que só fariam sentido ainda no primeiro ato; além de uma resolução tão rápida do encarniçado conflito central que mais parece um milagre, um Deus Ex Machina que diminui a qualidade da boa trama até então. Em A Intrusa, perseverança e humildade caminham juntas e fazem com que a protagonista conquiste seu espaço aos poucos, pela excelência do trabalho e contenção do próprio ego e despeito. É um livro “de torcida” que compensa a maior parte do suspense que cria em torno da questão principal, exceto pela correria ensandecida de sua reta final.

A Intrusa (Brasil, 1908)
Autora: Júlia Lopes de Almeida
Publicação original (folhetins): Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1905
Editora original (primeira encadernação): Francisco Alves, 1908
Edição lida para esta crítica: Editora Principis, 2019
200 páginas

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