Antes de falecer em 2017, com 92 anos, o engenheiro bolonhês Giorgio Rosa, símbolo esquecido de toda uma década e da anarquia materializada na qualidade de presidente da República da Ilha das Rosas ou, em esperanto, a língua oficial dessa nação jamais reconhecida, Respubliko de la Insulo de la Rozoj, deu sua bênção para a produção de uma obra ficcional sobre sua inacreditável história ocorrida entre 1968 e 1969 a 500 metros além das águas territoriais da Itália, mais especificamente em frente ao balneário de Rimini. E o resultado é uma obra que é extremamente curiosa por sua premissa do tipo “a vida pode ser muito mais inacreditável que a arte”, mas que não sabe muito bem usar o tom farsesco e satírico eleito por seu diretor e co-roteirista Sydney Sibilia para transformar a saga em mais do que uma curiosidade audiovisual.
Há, inegavelmente, uma camada melancólica para o projeto de Rosa de viver “fora do Estado”, construindo e fundando um país-ilha-plataforma de forma a não mais ter que se curvar a regulamentações estatais das mais variadas naturezas, criando o que mais se assemelha ao local fictício (também uma ilha) conhecido como Utopia, que Thomas Morus idealizou ironicamente em 1516. Sibilia, sem perder de vista essa “tristeza” que perpassa a narrativa, emprega uma abordagem irônica e cômica no filme, o que sem dúvida é a escolha perfeita por espelhar exatamente o que Morus fez em seu célebre livro, caracterizando sua Utopia não como o lugar ideal cujo significado a palavra acabou adquirindo, mas sim como o lugar impossível e impraticável. Da mesma forma, como a história da Ilha das Rosas, cujo pedido de reconhecimento como nação efetivamente chegou a ser analisado pelas Nações Unidas, é surreal e bizarra por si mesma, a comicidade era talvez até necessária para que a realidade dos fatos não atropelasse a ficção.
O problema é que o lado melancólico da narrativa, algo presente desde o início quando vemos Giorgio Rosa (Elio Germano) morrendo de frio no gigantesco e vazio lobby do Conselho da Europa, em Estrasburgo, lutando para evitar a destruição de seu “país”, engole a película de tal maneira que tudo o que conseguimos sentir pelo protagonista é pena. Pena por ser um inventor maluco que, tendo construído um carro com suas próprias mãos, não percebe que precisa de placa e carteira de motorista para dirigi-lo pela cidade, pena por sua inabilidade amorosa com mulheres, pena por viver tão desgarrado do mundo que ele realmente precisa criar seus 400 metros quadrados de utopia para sentir-se bem. E não quero dizer com isso que sua aventura nos anos 60 merece ser condenada, pois não é esse o caso nem de longe. Há que se louvar alguém que faz das tripas coração para tornar palpável algo em que acredita de verdade, mas Sibilia deixa a aparência de “loucura”, por assim dizer, tomar conta da história, ainda que o aparato governamental italiano (ou de qualquer país) seja também demolido no processo juntamente com a própria Igreja Católica que se incomoda profundamente com uma “bunda” no jornal, perpassando a obra de críticas ferinas ao burocrático aparato estatal.
Talvez o longa tivesse se beneficiado mais ou de uma abordagem cômica rasgada ou de uma abordagem dramática completa. O meio termo acabou ficando estranho. Nem lá, nem cá, nem engraçado o suficiente e nem dramático o suficiente. Navegando entre uma ponta e outra, claro, há a situação surreal da Ilha das Rosas em si e de seus fundadores que, além do inconformista Giorgio Rosa, conta com seu amigo Maurizio Orlandini (Leonardo Lidi), cansado de trabalhar com o pai e de furtá-lo, hilariamente culpando os calabreses, e que permite a criação da infraestrutura física da plataforma, Wolfgang Rudy Neumann (Tom Wlaschiha), um apátrida originalmente nascido na Alemanha que é organizador de eventos, transformando o lugar em uma cobiçada boate no Mar Adriático, Franca (Violetta Zironi), uma mulher de 19 anos grávida de alguém que nem ela sabe quem é que se torna a bartender e Pietro Bernardini (Alberto Astorri), um silencioso náufrago que se torna o primeiro residente do lugar. Eles e mais a ex-namorada de Rosa, a professora de Direito Internacional Gabriella (Matilda De Angelis) dão vida e graça pontualmente à narrativa, em uma estrutura que está muito mais para uma sucessão de esquetes do que para um filme fluido propriamente dito.
Mesmo assim, há muito o que se pensar depois da simpática projeção. O próprio conceito da formação de um Estado, algo difuso, mas muito presente até mesmo nos dias atuais em que efetivamente existem diversas regiões e povos que assim se consideram sem efetivamente terem reconhecimento como tal, é algo que merece reflexão. Claro que a incompetência estatal – o que é uma ironia, já que podemos perfeitamente imaginar a República da Ilha das Rosas tendo os mesmos problemas do Estado de onde surgiu – é a temática mais aguda e evidente, outro aspecto que nos cerca diariamente há décadas e décadas a fio, com regulações, impostos, burocracias e injustiças incompreensíveis e que incomodam profundamente. Mas há o lado inocente e puro da própria concepção de Giorgio Rosa ao criar seu enclave marítimo simplesmente por ser uma opção disponível em sua mente inconformada e frustrada. Quantos de nós não gostaríamos, lá no fundo, de realmente, literalmente, verdadeiramente nos governar, não é mesmo?
A Incrível História da Ilha das Rosas é um filme que se vale de sua história inacreditável para se vender e prender a atenção do espectador, mas acaba não fazendo mais do que isso. Sem dúvida é uma obra que merece destaque por trazer à tona uma anedota histórica completamente esquecida e que tem potencial de gerar conversas interessantes e até, quem sabe, servir de faísca para que saiamos do sofá para fazer algo mais do que apenas reclamar em rede social, mas ela poderia ser também uma experiência audiovisual inesquecível com um pouco mais de esforço por parte da produção.
A Incrível História da Ilha das Rosas (L’Incredibile Storia dell’Isola delle Rose – Itália, 09 de dezembro de 2020)
Direção: Sydney Sibilia
Roteiro: Francesca Manieri, Sydney Sibilia
Elenco: Elio Germano, Matilda De Angelis, Leonardo Lidi, Fabrizio Bentivoglio, Luca Zingaretti, François Cluzet, Tom Wlaschiha, Alberto Astorri, Violetta Zironi, Andrea Pennacchi, Fabrizio Rongione, Teco Celio, Giulio Farnese, Federico Pacifici, Ascanio Balbo, Riccardo Marzi, Marco Pancrazi, Luca Della Bianca, Marco Sincini
Duração: 117 min.