Goste ou não de Glauber Rocha, tenha simpatia ou não por suas temáticas e pelo modo como o diretor se tornou cada vez mais iconoclasta, alinear e não-narrativo em seus filmes, qualquer espectador terá de admitir uma coisa: o cineasta baiano era um realizador extremamente criativo e muito corajoso. Após a sessão do desnecessariamente longo A Idade da Terra, o espectador terá um misto de alumbramento e incômodo, uma profusão de sentimentos e opiniões sobre a obra que acabou de assistir: um manifesto fictício-documental sobre a sociedade, a mentalidade e as organizações hierárquicas através da História do Brasil.
Rocha já tinha abordado o tema das raízes nacionais como símbolo e alegoria em Terra em Transe e continuado a saga em um outro espaço-tempo, quase como uma extensão típica dos regimes que se organizavam daquela forma em Cabeças Cortadas. Podemos até entender o retorno do diretor ao tema no filme Câncer, o seu interessante “outro lado da moeda” em relação à situação opressiva e tendenciosamente comodista da maioria dos indivíduos em Barravento. Todavia, o que vemos em A Idade da Terra, é um outro universo cinematográfico, uma forma quase surreal de se fazer um filme com o tema e o objetivo pretendidos pelo diretor nesta que seria a sua última obra.
Com uma câmera inquieta por diversos espaços e situações que pulsam de brasilidade, o diretor nos apresenta recortes incompletos e quase desconexos (não fosse a linha crítica que marca cada um deles) de Cristos denunciadores da situação do povo brasileiro e do Terceiro Mundo, das mazelas do Capitalismo e dos vises políticos do final do século XX. Vemos o Cristo Negro, o Cristo Dominador Português, o Cristo Ogum-Lampião, o Cristo Guerreiro e o Cristo Pescador desfilarem por entre fiéis e infiéis, seguidores e detratores, espaços urbanos e selvagens, lugares de música, gritos, murmúrios e discursos. Quase não há silêncio nessa aventura épica de Glauber Rocha.
A geografia do filme é precisa e tem um forte significado no contexto a ser mostrado: Salvador, Rio de Janeiro e Brasília, as três capitais do Brasil. Nelas, buscas por significado, tentações históricas e críticas sociais diegéticas são feitas. O demônio colonizador chamado Brahms transita entre todos, fala bonito, convence e enoja. Cada espectador terá um impacto diferente em relação ao experimento, principalmente com esses destaques de personagens em cada “bloco individual”, mas uma mensagem final, um chamado para “olhar ao redor”, ficará no ar até mesmo para os mais incautos.
O que pesa em a Idade da Terra é o excesso de Glauber em relação aos símbolos usados, as danças, os elementos de culto. Assim como em Claro e um pouco como em O Leão de Sete Cabeças, o diretor tem um projeto riquíssimo em mãos, realiza-o de forma ousada e desafiadora, mas mergulha de maneira insana em seu próprio caos, sendo consumido (e consumindo a qualidade de seu próprio filme) pela falta de parcimônia narrativa. A indicação das danças e ritos poderiam ser diminuídas e o efeito crítico final seria exatamente o mesmo, até porque, esses momentos são transições pouco orgânicas, mais chateiam do que acrescentam à narrativa.
Contudo, a Idade da Terra sobrevive bem à sobra que o constitui. Seu conteúdo essencial supera o exagero do diretor e cativa o público não só pela força do discurso ou pela criativa teia estética que se estende durante toda a projeção. O filme se mantém firme por ser atemporal e caber em um gigantesco número de conquistas de território, dominação cultural e escravização que presenciamos ao longo de toda a nossa História. O muitíssimo bem escolhido título do filme nos deixa clara essa questão. Apesar de se referir a uma realidade brasileira, o seu conteúdo é uma máquina expositiva daquilo que fez envelhecer e sofrer a T(t)erra.
A Idade da Terra (Brasil, 1980)
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha
Elenco: Maurício do Valle, Jece Valadão, Antonio Pitanga, Tarcísio Meira, Geraldo Del Rey, Ana Maria Magalhães, Norma Bengell, Danuza Leão, Carlos Petrovicho, Mário Gusmão, Paloma Rocha
Duração: 140 min.