“Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer”
Sempre fico mexido quando abro um de seus livros e antes mesmo de ler já sinto qualquer coisa de diferente. Até contos lidos por mais de uma vez, me sinto agitado quando vou relê-los. E ainda antes de escrever sobre Clarice – coisa que raramente me atrevo a fazer – tenho sempre de pensar bem antes de iniciar, porque nunca sei se darei conta. Tornou-se quase um ritual abandonar qualquer uma de suas obras no momento em que leio uma passagem que me espanta completamente. Passei um dia inteiro perturbado pensando na frase: “Voltou o quê?”, proferida por Armando à sua esposa Laura ao fim do conto A Imitação da Rosa, quando ela, após voltar de um hospital psiquiátrico, sofre um delírio ao passar um dia inteiro sozinha em casa; Laura, vendo-o chegar pela porta da frente, olha-o com uma face oblíqua e doentia – novamente doente – e pergunta: “Voltou, Armando?” e ele a responde no tom mais ríspido que eu já li, até hoje, em toda a literatura mundial. Jamais li em nenhuma literatura uma construção frasal tão cheia de força, sentido e rispidez quando dessa ocasião. Não consegui terminar o Laços de Família naquela semana, finalizei na seguinte. Tenho um misto de prazer e repulsa quando leio essa senhora. Isso é Clarice Lispector.
A Hora da Estrela é o seu último romance, o seu último exercício de escrita antes de partir. Neste mesmo ano, em 1977, Clarice despede-se em definitivo da literatura brasileira. Romance ou novela, meio indefinido; uns dizem romance, outros novela. Mas pela última vez em que publica um livro, a autora coloca em jogo essa poderosa arma de crítica social que é a história de Macabéa. É este também o mais lido e o mais conhecido dos livros da escritora, pelo qual quase todo mundo começa e quase todo mundo tem uma opinião sobre, pelo bem ou pelo mal. No meio da ditadura militar, não é que ela me vem com um enredo sobre uma imigrante nordestina que se sente deslocada e rejeitada na metrópole carioca? De certo, de algum modo, a história dessa imigrante é refletida na sua própria trajetória pessoal, visto que Clarice, depois de vir muito criança para o Brasil, aloja-se em Alagoas, justamente o estado de onde vem sua protagonista.
Por um longo tempo Clarice foi acusada de escrever abstrações, de se preocupar demais com outros problemas que não os problemas sociais, de ter uma visão doméstica que era antes um artifício estético da ‘escrita feminina’ do que uma crítica à posição da família e da mulher; de que estava muito ocupada escrevendo sobre ideias existencialistas, sobre a loucura, devaneio e outros temas que, a princípio, não são engajados; acusada de que, enfim, do seu lugar de uma mulher privilegiada da Zona Sul do Rio de Janeiro, esqueceu-se da realidade que a rodeia. Muito em razão da sua escrita abismal e da má compreensão que se tem da autora, inúmeros críticos deslizam em analisá-la de maneira íntegra, com justeza – o que finalmente tem mudado nos últimos anos. Mas digo isso porque A Hora da Estrela, ao lado de Mineirinho, desmistificam essa ideia e se colocam na posição de serem duas das maiores obras socialmente críticas que a Literatura Brasileira já produziu.
Estruturalmente, este é o seu livro mais “simples” em termos de escrita, digamos assim. Aquela sintaxe moderna, os infinitos monólogos interiores misturados ao fluxo de consciência dos personagens, como ocorre em A Paixão Segundo G.H, não são tão presentes aqui como forma, mas ela mesma explica, por meio do narrador, o Rodrigo S.M., que o livro não irá complicar as coisas porque não faz sentido rebuscar a forma do romance para falar da história de Macabéa, a alagoana que vai para o Rio de Janeiro tentar a vida só com o terceiro grau do ensino primário concluído. Ela, que é intensamente oprimida por uma cidade inteira. É uma narração simples e linear para uma história também simples, produzindo uma concordância entre forma e conteúdo. É paradoxal porque, ao fundo, não tem nada de simples, é só uma capa que engana. Claro, A Hora da Estrela se lê numa sentada, sem grandes prejuízos de compreensão, mas o que está por trás da simplicidade é o que transforma este romance em obra-prima. O que está por trás é uma literatura profundamente engajada e de alto nível, com um grau de sofisticação, preocupação e entendimento da realidade brasileira que espanta qualquer um.
Ainda sobre a estrutura, o livro tem uma espécie de metalinguagem narrativa. Rodrigo S.M. é a pessoa que nos fala a respeito dessa imigrante, mas veja: esta não é a história real de Macabéa, ele nem a conhece. Num dia, andando pelas ruas do Rio, ele a vê com uma aparência perdida, o olhar vago, o que chama a sua atenção, e então ele inventa aquela que poderia ser a história dessa mulher desconhecida. Assim, a sua história seria a de uma mulher jovem, de 19 anos, vinda do Nordeste para o Rio de Janeiro e que é tão pobre, mas tão pobre, que só come cachorro-quente. Sonha em ser datilógrafa, mas só mal sabe escrever. Passa por inúmeros perrengues, namora com Olímpico, um sujeito que o tempo inteiro a despreza, rebaixando-a, mas como não conhece o amor, acha que tudo o que recebe é afeto. Numa ida ao hospital, descobre-se doente e vai à cartomante ler o futuro e as coisas ironicamente se revelam positivas para ela, mas a tragédia já estava anunciada. Nas palavras de Clarice, que resume tão bem o seu enredo, ela diz que essa é a história de uma inocência pisada e de uma miséria anônima. Nada resumiria melhor do que isso.
A Hora da Estrela não é a história dessa personagem em específico – até é, para os que querem ler assim -, mas Clarice fala de toda uma dinâmica da geografia da nação brasileira e de todos os problemas sociais que levam a esse fluxo imigratório nordeste-sudeste. O narrador, Rodrigo S.M., tem compaixão de sua heroína trágica e até apaixona-se por ela em determinado momento, como se estivesse enfeitiçado por sua própria criação. No fundo, esse narrador tem uma profunda consciência de classe e não hesita em engrandecer a pobre Macabéa. Afinal, a protagonista vive num estado de invisibilidade social numa cidade que foi feita inteira para ser contra ela. Numa passagem, ele diz que a moça é uma verdade da qual ele não queria saber. A vida é um soco no estômago.
Numa ida ao hospital, o médico, percebendo sua pobreza, a recomenda, com um ódio gigantesco no olhar, que coma várias vezes por dia uma macarronada bem italiana. E Macabéa lá tem dinheiro pra comer isso? Ele sabe que ela é pobre, uma vez que, Maca, inocente, lhe pergunta se isso é gostoso de comer… e então lhe diz, num tom odioso, que come isso quase todos os dias. Mas Macabéa não percebe a maldade do mundo, já que ela é feita de inocência, sem maldade nenhuma. Isso passa despercebido para ela, mas não para nós, que vemos Clarice desnudar a maldade humana nos mínimos gestos do cotidiano, oferecendo um mal-estar constante diante da espécie humana.
Essa é também a experiência mais crua de um desamparo social, ou de um desamparo originário, uma vez que Macabéa não tem pai, nem mãe. Estamos diante de uma personagem totalmente desnuda, que não tem amor de nenhum lado, apenas do narrador, que a inventa. A inocência pisada introduz na obra um tom melancólico, mas que não nos faz derreter nem chorar. No entanto, é de uma melancolia crua, social, embrutecida, que nos faz enrijecer o coração, e então nos apiedamos dela num nível de dó. Macabéa oferece um sentimento de pena para o leitor.
Contudo, como é possível essa personagem tão anêmica ser tomada como a estrela do título? Ou melhor, o que significa a hora da estrela? Quer dizer, não o título, mas a expressão em si, o que é? A designação refere-se à sua própria trajetória de vida e morte. Como um sujeito invisível na cidade grande, Macabéa não detém olhares para si, ninguém a percebe. No entanto, no momento em que morre, todos os olhares voltam-se para ela quando está caída no chão; ali é a sua hora, a sua hora de estrela de cinema, de ser notada como nunca antes. E então ela sorri e tem um orgasmo no momento mais trágico da narrativa, que não deixa de ser o mais sublime, entretanto. Macabéa vira estrela.
O seu romance derradeiro lê, numa atualidade ímpar, a sociedade brasileira a partir de uma única personagem, que retira a máscara de um Brasil atrasado e cruel – moderno, é verdade, mas ainda muito, mas muito arcaico. Não é profecia o fato de Clarice ficcionalizar a dinâmica que rege ainda hoje as relações sociais, nem é justo dizer que Clarice é profética, mas isso chama-se sensibilidade e atenção. O engajamento, que a crítica literária nem sempre remarcou na sua prosa, mostra-se aqui potente e revela uma autora que esteve profundamente atenta aos problemas mais urgentes de um país que nem sempre é justo e transforma os impasses da materialidade social numa composição literária impecável, complexa em linguagem e absolutamente densa em sentido. Revisitar Clarice, não importa a ocasião, sempre me lança na seguinte questão: “Quem tem medo de Clarice Lispector?”. Acho que eu tenho um pouco.
A Hora da Estrela (Brasil, 1977)
Autor: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Posfácio: Paulo Gurgel Valente
Páginas: 87 páginas.