Cinematograficamente falando, toda década possui algo para nos brindar. Cada época apresenta sua peculiaridade, assim como foi com os anos 60 e sua ascensão de musicais, cheios de fórmulas replicadas até hoje. Embora nenhum momento tenha sido limitado, o decorrer dos anos 80 revelou uma versatilidade de extremos: se temos Stanley Kubrick e seu forte Nascido Para Matar (1987), A História Sem Fim (Wolfgang Petersen, 1984) dá um direcionamento para o que viriam a ser filmes pautados totalmente na fantasia. Obviamente, o sucesso da obra perdurou em outras de temáticas semelhantes, mas é quase unanimidade, no quesito popular, a preferência pela película de Peterson. Será mesmo seu legado eterno?
Para Bastian (Barret Oliver), sim. Afinal, é ele quem pega o livro chamado História Sem Fim da livraria de um idoso ranzinza ao fugir de alguns valentões. E também é ele que, mesmo com os avisos de perigo do ex-dono do exemplar, descobre por si mesmo que está diretamente envolvido com a história, inicialmente, de Atreyu (Noah Hathaway), incumbido de salvar Fantasia do destruidor Nada. O que é Fantasia, o que é o Nada, quem é Atreyu, e por aí vai, são perguntas normais de serem pensadas, e todas são respondidas por intermédio de uma “lente” que apenas indivíduos totalmente imersos no enredo serão capazes de desvendar. E não duvidar. Se tratando de uma atmosfera tão distante do que pode parecer um real, a dúvida faz parte da trilha de construção do filme, mas provavelmente não será ela que ditará a experiência que a longa-metragem colocará o espectador.
Bastian é um ávido leitor desde sempre e, como já é de se esperar, sua relação com a realidade está longe de ser amigável. Para a satisfação de muitos, o personagem se refugia – por meio do livro – em Fantasia, local fictício que está prestes a ser desfeito. Atreyu, aparentemente tão criança quanto Bastian, necessita salvar a Imperatriz (Tami Stronach) e, consequentemente, salvar seu mundo, o transformando em um suposto salvador, depósito de esperança tanto do menino humano quanto do público. Fantasia, entretanto, não é um lugar tão confortável a ponto de se querer ir para lá. Estranhamente, talvez pela escuridão quase perpétua ou até pelo CGI um tanto precário daqueles tempos, o ambiente não remete a uma leveza esperada em um filme destinado majoritariamente para crianças. Em Fantasia, tudo é denso, neblinoso, excêntrico, mas suas figuras são incrivelmente carismáticas.
As constantes provações de Atreyu fazem renascer uma esperança a cada conquista, tornando cada feito grandioso, comemorado tanto pela audiência quanto pelos envolvidos. Da mesma forma que seu triunfo é tido como uma grande vitória e como um fôlego revigorante para quem acompanha a saga do jovem, seus fracassos desmoronam qualquer um. A manipulação emocional do filme tem serventia a cada altos e baixos, em uma típica jornada do herói. Nada é apático, já que a sensibilidade exigida cresce conforme o apego para com os demais presentes em Fantasia e sua luta contra o inimigo invisível (Nada). A inventividade na hora de caracterizar tais figuras extrapolou apenas uma fórmula, tendo, mesmo nas restrições tecnológicas e cenográficas de 1984, uma variedade absurda de aspectos. Cabeças gigantes e homens-pedra podem ser amedrontadores de início, mas o carisma que paira entre estas e outras exóticas alegorias supera o medo e o transpassa para o nível de compaixão.
O padrão de testes contínuos para Atreyu em sua jornada é formulaico e, em certos pontos, previsível, mas não maçante. Na verdade, a magia que compõe todos os obstáculos do protagonista, atingem o sentimentalismo de duas formas básicas: a alegria e a tristeza. Está sempre polarizada a sensação de assistir A História Sem Fim, e o andamento da história, não só acrescenta mais tempo para o espectador naquele mundo, mas também fixa nele o que a própria obra quer dizer. A somatização de personagens cativantes, como o dragão Gmork (Alan Oppenheimer) e este ritmo de queda e ascensão, aliado a uma narrativa de uma irrealidade visível, exercita a imaginação do público de uma maneira nunca exaustiva, e sim inclusiva.
Com a ajuda de músicas entusiastas de synthpop, é possível ficar perdida dentro de tantos nomes falados. Mas, se bem reparado, as adversidades de Atreyu, lidas por Bastian, estão correlacionadas com o interior do menino guerreiro, assim como o temido Nada é capaz de ser interpretado como um reflexo de descrença, ou do mundo, ou dos personagens fantasiosos que pouco creem em sua respectiva fantasia. Se o público atravessar a barreira de um universo longínquo e ilusório, há uma chance de se enxergar a existência de propostas pertinentes na película. Concebida para não ter nenhuma ligação com o mundo onde os humanos vivem, as preocupações dos moradores de Fantasia são sobre temer um fim, igualmente como o idoso da livraria teme o fim de boas histórias e de uma criatividade mais aflorada.
A História Sem Fim se junta a filmes como A Princesa Prometida (1988) como exemplares de películas de fantasia dos anos 80. Tais obras conseguem unir todos que possuem uma imaginação fértil e um coração aberto. A primeira referida, então, não apresenta uma magia boba ou superficial a ser contada e repassada, e sim uma aventura relevante, mas não dura demais para tirar o carro chefe do longa-metragem: o escapismo da realidade. O estranhamento ocorre quando se tromba com algo inesperado, como o caramujo veloz e um morcego gigante, mas passado o susto e instalada a empatia, A História Sem Fim flui como uma história contada na infância. Por ela estar no imaginário de diversas pessoas, é primordial que a obra não fique unicamente na mente daqueles que já viram e guardaram para si. Por isso, não há história nenhuma que tenha um fim, se a não deixarem ter.
A História Sem Fim (Die unendliche Geschichte / The never ending story – Alemanha, EUA, 1984)
Direção: Wolfgang Petersen
Roteiro: Michael Ende, Robert Easton, Wolfgang Petersen
Elenco: Barret Oliver, Noah Hathaway, Tami Stronach, Patricia Hayes, Moses Gunn, Sydney Bromley,Gerald McRaney, Deep Roy
Duração: 94 min.