Quando se fala em guerra, o imaginário coletivo é repleto de jovens rapazes arriscando (e perdendo) suas vidas em nome da pátria, de um ideal ou de outras coisas aparentemente grandiosas do gênero, repetidas à exaustão em filmes, games e afins. Sempre rapazes. Mulheres? Talvez uma mãe, uma noiva à espera, no máximo uma enfermeira. O tema da guerra é, por definição, masculino. Erroneamente, como Svetlana Aleksiévitch mostra desde a introdução do incrível A guerra não tem rosto de mulher, na qual faz um apanhado da participação de mulheres na guerra ao longo da História. Embora a presença de mulheres combatentes remeta à Grécia antiga, suas vozes foram silenciadas, e sua participação, esquecida. Isso também ocorreu na Segunda Guerra Mundial, em que mais de 1 milhão de mulheres soviéticas se alistaram no Exército Vermelho que ajudou a derrotar Hitler. Aleksiévitch dá voz a essas mulheres, que atuaram não só como enfermeiras, mães e esposas, mas também como francoatiradoras, tanquistas, sapadoras, cirurgiãs, membros civis da resistência, entre outras funções.
Aleksiévitch chama a atenção para o fato de que os relatos de guerra sempre partem do ponto de vista masculino. Segundo ela — e também segundo muitas das mulheres ouvidas no livro — as diferenças culturais entre homens e mulheres fazem com que eles e elas vejam a guerra de diferentes perspectivas e, portanto, narrem de maneira distinta. Enquanto homens comumente focam nas grandes batalhas e em feitos heroicos, as mulheres, além disso, atentam para detalhes, para o sofrimento humano, para o despedaçar da vida cotidiana. E a autora se interessa por isso: não pelo épico, mas pelo humano pequeno diante dos grandes acontecimentos históricos. Essa escolha narrativa de Aleksiévitch também é perceptível em Vozes de Tchernóbil, em que busca os camponeses, as crianças, os sobreviventes para narrar o maior acidente nuclear da História. No caso de A guerra não tem rosto de mulher, entretanto, o elemento humano, sofrido e comum foi silenciado ao longo dos anos, a ponto de Aleksiévitch ter seu livro censurado pela URSS por “diminuir” a grande Vitória e focar em coisas “irrelevantes”.
A guerra contada pelas mulheres não interessa aos recrutadores de jovens patriotas, na medida em que desnuda toda a sujeira e a pequenez existente por trás do heroísmo e do patriotismo. Nesse sentido, essas guerreiras foram e ainda são silenciadas. A autora visita casais de veteranos de guerra em que o homem diminui, interrompe ou silencia o relato da mulher, afirmando que ela “não sabe contar” o que viveu. Aleksiévitch chega a ser questionada sobre por que escolher ouvir mulheres: não há homens suficientes? Dessa forma, vê-se que as combatentes soviéticas, apesar de terem ido para o front com os homens, terem sofrido, sido mutiladas, mortas, abusadas e desacreditadas, ainda foram excluídas dos louros da Vitória e caladas pelos próprios companheiros de combate. São mulheres que, mesmo tendo realizado grandes feitos, sofrem com o machismo mais cotidiano e comum, que nega sua importância e igualdade.
Apesar da insistência nas “diferenças” entre homens e mulheres às vezes incomodar um pouco, ao longo da narrativa fica claro que isso realmente ocorre. Há que se ter em vista que, na União Soviética dos anos 1940, os gêneros têm papéis bem definidos, e a feminilidade é um elemento importante. Sim, as moças relatam muitas vezes o sofrimento por rasparem seus cabelos, usarem fardas, calçados e até roupas íntimas masculinas, irem para o front sem nunca terem sido beijadas, deixarem seus filhos com outras pessoas… nada disso, porém, indica que a vaidade, o romantismo ou a feminilidade atrapalharam de alguma forma sua atuação na guerra. Elas sofrem por essas questões, mas também provam que força e doçura, delicadeza e dureza, amor e ódio não são, de forma alguma, excludentes. E é aí que reside a maior força de seus relatos: mostrar seu lado humano e vulnerável, ao contrário do que homens e censores pensaram à época da escrita do livro, não torna seus depoimentos menos heroicos, pelo contrário – mostrar a vida perdida, deixada para trás em nome de um ideal, de uma escolha corajosa (lembrando que mulheres não eram obrigadas a se alistarem) as torna mais admiráveis e grandiosas.
A estrutura do livro também merece destaque. Organizado entre depoimentos de mulheres veteranas e considerações feitas pela escritora, A guerra não tem rosto de mulher é um relato polifônico, isto é, tecido a partir de vozes diversas. Isso é bastante interessante, pois se pode dizer que há vários narradores, várias considerações sobre um mesmo tema. Esse estilo de narração não só é contemporâneo, mas também remete às considerações de Walter Benjamin sobre o narrador; segundo ele, a Primeira Guerra Mundial marca o fim do narrador tradicional, na medida em que é grande demais, terrível demais para ser contada apenas por uma voz. Tendo isso em vista, vê-se que o narrador não morreu, mas se fragmentou em muitas vozes, já que, sozinho, não dá conta de todo o absurdo da guerra. Essa fragmentação, então, é um recurso utilizado em alguns relatos do gênero, grandes demais para uma só narrativa. É o que se vê, por exemplo, em Mayombe, do angolano Pepetela, e na obra de Aleksiévitch — não só no presente livro, já que Vozes de Tchernóbil tem a mesma estrutura.
Um aspecto comovente na vida das combatentes soviéticas que também se destaca no livro é o pós-guerra. Enquanto os homens que sobreviveram voltaram para casa como heróis, admirados e aclamados, o mesmo não ocorre com as mulheres do front: além de enfrentarem dificuldades como reconquistar os filhos deixados com terceiros durante anos, elas são discriminadas, desprezadas, diminuídas. As outras mulheres muitas vezes não as respeitam por acreditarem em relacionamentos extraoficiais no front; os homens não as desejam por as acharem menos mulheres, menos femininas que as outras; a sociedade muitas vezes se incomoda até com o uso de suas condecorações e medalhas conquistadas duramente. Muitas dessas moças, que voltam da guerra com a perspectiva de estudo e casamento, além dos traumas e ferimentos ainda têm de lidar com o desprezo e a solidão. Segundo um dos depoimentos, essas mulheres tiveram “sua vitória roubada”. Por quem? Por uma sociedade patriarcal, machista e injusta, que nunca premia os sacrifícios das mulheres na mesma medida que os dos homens. Apesar de retratar circunstâncias extraordinárias, nesse sentido A guerra não tem rosto de mulher é dolorosamente atual e facilmente reconhecível.
A obra de Svetlana Aleksiévitch é singular. Misto de literatura, jornalismo e relato histórico, retrata uma já extinta União Soviética formada por gerações nacionalistas, comunistas, altruístas. Traz em si a força da oralidade, de narrativas que em pouco tempo seriam perdidas se não fossem registradas com o devido cuidado – o que a autora faz muito bem. É formada essencialmente pela humanidade de seus personagens, atores esquecidos da História com H maiúsculo que privilegia os nomes e rostos dos que se sentam atrás de mesas, não dos que arriscam suas vidas em combate. Aleksiévitch faz uma espécie de serviço público, dando voz aos silenciados por uma ditadura – do altamente citado Stálin – que punia até seus heróis de guerra se fossem prisioneiros do inimigo: nada visto fora da URSS deveria ser relatado para a população. Felizmente, hoje não só os ex-soviéticos, mas também todos nós podemos ter acesso a esse material humano e histórico incrível. A guerra não tem rosto de mulher é uma leitura marcante, maravilhosa, e Svetlana Aleksiévitch, definitivamente, não ganhou o Nobel de literatura à toa.
A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (У ВОЙНЫ НЕ ЖЕНСКОЕ ЛИЦО) – Rússia, 2013
Autora: Svetlana Aleksiévitch
Publicação no Brasil: Companhia das Letras, 2016
Tradução: Cecília Rosas
390 Páginas