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Crítica | A Grande Beleza

por Luiz Santiago
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Em 1939, o diretor francês Jean Renoir lançou uma de suas obras primas: A Regra do Jogo. A obra trazia a convivência e os conflitos existentes em uma sociedade prestes a entrar em colapso, tudo isso centrado em um grupo “X” de pessoas, numa propriedade afastada da cidade. Espetáculos, mentiras, verdades, desabafos e truques podem ser vistos no decorrer do filme, ingredientes que dão uma tremenda riqueza ao drama e amplia as suas básicas classificações de gênero, do mesmo modo que abre um grande número de possibilidades para o espectador ler o que vê na tela.

Toda essa realidade é então vista através de exemplos pessoais ou íntimos sobrepostos a um certo mundo e a um certo momento histórico. Seu sentido imediato é o motor do texto, mas a realidade ali representada nunca envelhece. Guardadas essas proporções espaço-temporais e ideológicas, podemos facilmente enxergar em A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino, o mesmo exercício feito por Renoir em 39: as muitas mazelas, a pompa e a decadência de uma sociedade inteira reunidas em um único lugar.

A Grande Beleza é um filme episódico sem episódios. A rigor, não existe uma linha sequencial de acontecimentos, mas entendemos perfeitamente que as cosias giram em torno do jornalista Jep Gambardella (interpretação gloriosa do ator Toni Servillo), um mundanista que percorre e se arrasta por Roma, curtindo, trabalhando ou apenas de passagem por cenários, paisagens e eventos culturais e íntimos, todos eles com algum importante significado aparente, mas que na verdade levam o jornalista para um estado bem pós-moderno de espírito: o nada, o deserto do real. As maiores experiências que Gambardella tem, no decorrer do filme, são as perdas de pessoas próximas a ele e as memórias de um tempo passado. Morte e memória. Morte no presente e passado vivo na imaginação — ou quase fantasiado, como é de praxe.

Guardando estreitas semelhanças com as viagens romanas e personalísticas de Federico Fellini em A Doce Vida, Oito e Meio ou Roma, Sorrentino consegue um resultado extremamente realista e ao mesmo tempo caricato, escarnecedor e cínico da Itália contemporânea (para dizer o mínimo). A jornada de Gambardella, seus encontros, as lembranças da primeira mulher que amou, sua vida profissional cheia de encontros bizarros e simbolismos internos — se formos decupar cada estada e experiência do jornalista estaremos diante de um muitíssimo bem realizo mise en abyme — não se fecham nos episódios em si, elas formam um mosaico plural de sua cidade-fetiche, culminando com uma perfeita imagem do espaço geográfico e das pessoas que fazem parte daquele lugar. Paolo Sorrentino conseguiu realizar uma obra-prima aos pedaços.

Os primeiros minutos de A Grande Beleza são de contemplação embasbacada e, a não ser que o espectador tenha um pouco experiência cinematográfica, especialmente com diretores italianos como Fellini, Mario Monicelli, Ettore Scola e Marco Ferreri, a verdadeira intenção e homenagem de Sorrentino aqui, talvez tenha maior rejeição a essa abordagem. Isso também é válido para quem gosta de cobrar objetividade linear e explicação detalhada de contextos fílmicos, de preferência em curta duração. Nada disso será encontrado em A Grande Beleza. O filme tem uma organização de eventos no tempo presente, mas como já foi dito, tudo faz parte de um mosaico de variedades, alumbramentos e estranhezas, de modo que se alternam como numa alegoria de carnaval, mostrando com deboche um mundo de pessoas que se levam a sério demais e não conseguem perceber que a base que as sustentam está enferrujada.

Um dos elementos técnicos mais potentes do filme, no meio dessa viagem, é a música. De Georges Bizet e Bob Sinclar, a música embala e lamenta acontecimentos durante a projeção, servindo até de coro grego para a ligação entre determinados espaços cênicos e situações envolvendo Gambardella, seus amigos ou simplesmente pessoas que cruzam com ele no meio do caminho.

Essa excelência técnica também pode ser percebida nos figurinos, que, além de muito bem desenhados indicam variações de humor e personalidade de cada uma das personagens; na esplendorosa fotografia; na escrupulosa direção de arte, acompanhada de um desenho de produção que excursiona com a câmera por toda a cidade de Roma, em interiores e exteriores de palácios, igrejas, jardins e residências;  e na montagem. O ritmo do filme é um corpo inteligente, funciona de maneira orgânica e afasta tudo o que é supérfluo, de modo que a sua longa duração se deve ao grande número de coisas que realmente deveriam ser mostradas na obra, não aos excessos que deveriam ser cortados.

A jornada de Gambardella é a caminhada de um mundo em busca de sentido, em busca de algo que possa se enquadrar numa concepção muitas vezes simplória de beleza — a grande beleza da vida? — como se só pudéssemos escrever e viver o que é belo, o que nos agrada, o que nos faz bem. O filme prova e contesta a nossa forma de entendimento do real, mostrando o vazio intelectual, prático e de sentido em torno fama, dos que esbanjam dinheiro, das estrelas de última hora, dos que fazem autopropaganda, dos que odeiam tudo e não aceitam conversar sem brigar e querer se impor como verdade-máxima para quem quer que seja.

Após uma certa idade, como se dar conta do que foi feito de útil na vida e quantas mentiras foram contadas para que um sonho de sucesso se concretizasse? No meio de um ambiente barroco, completamente preenchido e povoado, o silêncio, o nada e a solidão imperam. Não há dúvidas de que só essa grande beleza (que certamente é um conceito ontológico, além da ideia histórica do que é belo) poderá tirar Gambardella e seu mundo, o nosso mundo, desse vácuo onde tudo acontece. O paradoxo do nada repleto de coisas. A Grande Beleza é um filme sobre o seu tempo, mas com um poder tão grande de contexto e representação simbólico-ideológica que sobreviverá como marco histórico de uma época. Uma obra-prima de Paolo Sorrentino. Um truque cinematográfico imediatamente cravado na lista dos inesquecíveis.

A Grande Beleza (La grande bellezza) – Itália/França, 2013
Direção: Paolo Sorrentino
Roteiro: Paolo Sorrentino, Umberto Contarello
Elenco: Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferilli, Carlo Buccirosso, Iaia Forte, Pamela Villoresi, Galatea Ranzi, Franco Graziosi, Giorgio Pasotti, Giorgio Pasotti, Massimo Popolizio, Sonia Gessner, Anna Della Rosa, Luca Marinelli, Serena Grandi, Ivan Franek
Duração: 142 min.

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