Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | A Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt

Crítica | A Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt

Infância hiperconectada e transtornos mentais.

por Luiz Santiago
5,6K views

A Geração Ansiosa (2023), estudo mais do necessário em nossos tempos, não nasceu como uma análise sobre a infância baseada no celular. O autor tinha por objetivo seguir um caminho mais institucional, falando sobre o exercício da democracia e a disseminação de ideias e informações (verdadeiras ou falsas) para a população, via redes. Seu capítulo inicial, porém, partiria de um ponto micro, lançando um olhar para as gerações mais jovens e, em seguida, ampliando o olhar para as massas. Os primeiros resultados foram tão chocantes para o psicólogo social, que ele resolveu mergulhar numa investigação minuciosa sobre a conexão da infância com as redes sociais e a emergência de transtornos mentais nas gerações que passaram a ter acesso livre às redes a partir de 2007 (sendo o ponto de virada, a década de 2010). Nessa abordagem, o autor se distancia da banalização do problema e faz uma análise que mescla delicadeza e rigor técnico, dialogando com os leitores e mostrando a urgência de se repensar o desenvolvimento infantil no meio da tempestade digital.

A pesquisa expõe uma situação alarmante: a ansiedade assume proporções inéditas e se estabelece como uma espécie de “pandemia silenciosa“, mostrando a transição do foco material e profissional dos Millennials (nascidos entre 1981 e 1995, segundo definição utilizada pelo autor) para a inquietação existencial da Geração Z (nascidos entre 1996 e 2012, segundo definição utilizada pelo autor). Partindo de uma excelente metáfora intitulada Crescendo em Marte, Haidt nos mostra o cotidiano de crianças e jovens que, ao se depararem com o desconhecido do universo virtual, se viram mergulhados em riscos comparáveis aos de uma expedição interplanetária sem garantias, ponto de vista que faz o leitor refletir profundamente sobre os limites de proteção das famílias (algo bastante discutido no livro, até por questões culturais do autor) e os riscos da exposição precoce a ambientes virtuais, cuja complexidade vai muito além da real compreensão de uma criança ou adolescente.

Ao discutir essa nova realidade, Jonathan Haidt destrincha a hiperconexão dos mais jovens e o impacto de uma comunicação mediada por algoritmos, favorecendo interações múltiplas e rápidas em detrimento de relações genuínas, mais longas e corporificadas. Destacando as graves consequências para o uso desordenado de smartphones e redes sociais por pessoas menores de 16 anos, o autor ressalta principalmente a privação de sono, o vício e a privação social. Sobre este último aspecto, o livro nos oferece uma excelente análise, sempre em linguagem bem acessível e com exemplos, da substituição do contato presencial por uma troca virtual (desprovida da riqueza dos gestos e das sutilezas que somente o encontro face a face pode proporcionar), chegando até o surgimento dos ciclos de dependência emocional e à construção de identidades marcadas por métricas superficiais e pressão desnecessária.

Como toda mudança tecnológica também está acompanhada por alterações nas conjunturas sociais, em diversos países do mundo (e o autor deixa claro que a intensidade dessas observações podem variar de país para país, a depender do quanto suas crianças e adolescentes estão conectados), temos a oportunidade de analisar como a infância baseada no brincar foi substituída pela infância baseada no celular, num processo que incluiu violência urbana, aumento do medo dos pais (genuinamente preocupados com tragédias possíveis a cada esquina), aumento exagerado da superproteção e retirada progressiva de autonomia de crianças. 

Nos capítulos em que trata disso, o autor nos dá um contexto físico, psicológico, pedagógico, psicomotor e de pleno desenvolvimento humano sobre como o exagerar nos cuidados acabou transformando os espaços de brincadeira e experimentação dos pequenos em ambientes exageradamente seguros e sem desafios. Esses parquinhos estéreis, para o autor, privam as crianças da chance de aprender com seus próprios erros e de desenvolver sua capacidade de preservação e cuidado consigo e com os outros. Para ele, é imperativo que a infância seja aproveitada com certa quantidade de riscos menores, para dar à criança uma resistência e compreensão de impactos no corpo e interação com os mais diversos objetos ao seu redor. Para Haidt, houve uma inversão no comportamento dos pais: passaram a superproteger os filhos em espaços saudáveis para que eles se desenvolvam (o brincar livre, o mundo real) e a deixá-los absolutamente livres em espaços nocivos para seu desenvolvimento cerebral, percepção comunitária e maturidade emocional (as redes sociais, o mundo virtual). Sem a preparação necessária de uma infância que conseguiu desenvolver-se com deveria, essas crianças são capturadas por milhares de propagandas, vídeos curtos, injeções cavalares de dopamina, cobranças inalcançáveis de corpos, rostos, roupas, famílias e vidas perfeitas… em paralelo com a banalização do trágico, a falsa empatia (#prayfor…), extremismos ideológicos, notícias falsas, acesso precoce à pornografia e aos nudes, contato com o cyberbullying e os “desafios de fóruns”, que já mataram centenas de adolescentes e influenciaram ações de extrema violência em lares e escolas. 

O autor não toma uma postura derrotista ou ranzinza em relação à tecnologia. O que ele deixa claro (inclusive denunciado falsas pesquisas e reportagens desonestas, propagandeadas pelas gigantes tecnológicas e pelos negacionistas dos malefícios de redes sociais para crianças e adolescentes) é que certas exposições e certos tipos de contato regular com algumas criações tecnológicas só podem acontecer quando o cérebro humano alcançou um grau de maturidade maior (embora não completo), o que ocorre por volta dos 16 anos, idade que ele defende como “maioridade na internet”, ou seja, a partir da qual os adolescentes poderiam entrar em redes sociais, com um tempo limitado de acesso por dia e com 1 dia na semana sem acesso algum a essas redes (nota: o autor esclarece que isso não inclui aplicativos de mensagens como Messenger ou Whatsapp, pois, “embora certamente sejam sociais, não são considerados redes sociais”).

Sem deixar de lado o aspecto social e cultural dos transtornos (há citação à pandemia e a outras mudanças que vimos acontecer dos anos 1990 em diante), a obra explora como as plataformas estimulam interações simplórias (de um para muitos… e de forma assíncrona) e reforçam a sensação de fragilidade emocional. Já no final, depois de um maravilhoso capítulo sobre o lado espiritual (no sentido mais amplo, filosófico e poético possível, uma vez que o autor é declaradamente ateu), analisando o quanto a essência, o comportamental das pessoas é afetado pelo vício em redes sociais, o autor passa um bom tempo falando de alternativas e ações para resolver boa parte do problema. E é impressionante como é mais fácil do que imagina, especialmente se considerarmos a gravidade da situação e o que está em jogo. Para as escolas, duas soluções (embasadas em pesquisas) são apresentadas: proibição do uso de aparelhos pessoais com acesso à internet dentro do ambiente escolar, e aumento dos períodos de brincar livre com os amigos — ou de dinâmicas escolares que incluam o lúdico e gerem interação entre os alunos (especialmente os menores de 16 anos), em vez de uma grade do tipo “mini-CEOs” com dezenas de compromissos diários e estressantes. 

Mais do que apenas aliviar os sintomas, essas ideias buscam redefinir a relação entre os jovens e o mundo digital. A obra convida a uma reavaliação dos modelos educativos e sociais que seguimos hoje, sugerindo resgatar práticas espirituais antigas (incluindo meditação e contato com a natureza) e pensar mais frequentemente em rituais de passagem e momentos de integração, como formaturas, colações, festas temáticas, acampamentos, sessões de cinema com amigos, lanche comunitário, ajuda a crianças menores e certas tarefas domésticas propícias para diferentes faixas etárias. É um livro completo nos aspectos que cercam o seu tema principal, com exceção do recorte geográfico (poucos países latinos, africanos e asiáticos fizeram pesquisas sobre o tema, por isso, quase não aparecem nos gráficos), e além de deixar claro o problema, rebate as contrariedades, apresenta opiniões diferentes, toca em diversas disciplinas e olhares acadêmicos e entrega uma longa lista de fontes de pesquisa, possibilidades de atualização dos dados apresentados e métodos de aplicar no lar e nas escolas uma das mudanças que essa geração precisa: poder ser criança e ser adolescente, não uma leva de robôs corcundas viciados em telas, ansiosos por constantes feedbacks positivos, incapazes de lidar com frustrações no mundo real, privados de sono, privados de foco, privados de habilidades físico-motoras, privados de uma capacidade de leitura de gestos e expressões faciais, incapazes de ler um ambiente e entender códigos sociais sensíveis e incapazes de estabelecer uma conversa inteligível de três minutos com alguém. 

Ou a gente retira o vício em telas das nossas crianças e jovens, ou a depressão, considerada a “doença do século XXI”, fará ainda muito mais estragos do que tem feito. E ainda tem professor fazendo abaixo-assinado contra Lei nº 15.100/2025, levando adiante o discurso desonesto de (“o problema não é o celular, mas o sucateamento da educação”), quando, na verdade, o celular também é um grande problema e esta é a forma mais eficiente de resolvê-lo, podendo agora voltar a energia para cobrar dos agentes políticos a sua resolução. Não é difícil entender. Especialmente porque estamos falando de centenas de pesquisas realizadas desde 2007, não de achismos emocionados de quem realmente acha que uma escola com celulares é um bom lugar para conviver e estudar. Qualquer um que tenha presenciado uma aula ou um intervalo de alunos antes e depois da proibição dos celulares nas escolas brasileiras, sabe muito bem do que eu estou falando. Antes de ler este livro, eu ainda achava exagerado o fato de terem proibido aparelhos pessoais com internet dentro das escolas (acreditava que “dentro das salas, bastava“). Depois de ser bombardeado com tantos fatos, gráficos, pesquisas, análises e opiniões de especialistas; e após ver a mudança positiva entre os meus próprios alunos (de 12 a 18 anos), posso afirmar que esta foi a melhor medida. Ao menos no aspecto de desenvolvimento dos alunos, nesta seara, estamos no caminho certo. 

Para pais, educadores e todos que convivem com crianças e adolescentes, A Geração Ansiosa é uma leitura que vai além do esperado e que certamente modificará o olhar de seus leitores para o tema dos celulares em tenra idade. O livro não só quebra paradigmas, como também nos convida a repensar a forma como lidamos com os desafios da juventude em meio a tantas possibilidades de telas, aplicativos, redes sociais e maneiras de monetização para os “pequenos influenciadores“. Com uma escrita profunda, plural e acessível, Jonathan Haidt traz percepções que transformam os conceitos que temos sobre o tema, e nos inspira a adotar uma abordagem mais humana e atualizada na educação e no cuidado dos pequenos. É um divisor de águas que incentiva uma reflexão sincera e prática sobre as mudanças que precisamos abraçar para um futuro melhor. Menos redes sociais e mais brincar livre. Menos influencers e mais contato humano real. Menos proteção em atividades lúdicas no mundo real e mais proteção no mundo virtual. O futuro depende disso.

A Geração Ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. (The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness) — EUA, 2024
Autor: Jonathan Haidt
Editora original: Penguin Press
Tradução: Lígia Azevedo
Edição lida para esta crítica: Companhia das Letras; 1ª edição (12 de julho de 2024)
440 páginas

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais