O primeiro volume da revista Jungle Action estreou nos Estados Unidos em 1954 e teve apenas seis edições, sendo cancelada em agosto de 1955. O título funcionava como uma coletânea de “tramas da selva”, estrelando personagens como Lo-Zar; Senhor da Selva; Menino das Selvas; Mulher Leopardo/Gwen e Man-Oo the Mighty.
O segundo volume da revista veio apenas no final de 1972 e as suas primeiras 4 edições tiveram exatamente o modelo do tomo anterior: uma coletânea de histórias selvagens, contando também com algumas reimpressões de sagas do passado. Então veio a edição #5, também uma reimpressão (da Avengers Vol.1 #62, lançada originalmente em março de 1969), onde vemos uma luta do Pantera Negra, Visão, Gavião Arqueiro e o convidado Cavaleiro Negro III (Dane Whitman), com seu cavalo Aragorn, contra o nacionalista (de viés político retrógrado e claramente monopolizador e ditatorial) Homem Gorila ou Man-Ape (M’Baku). O vilão — um súdito e líder tribal de Wakanda — ataca os estrangeiros, mesmo contra as ordens de T’Challa, e depois envenena todo mundo. Trata-se de uma trama básica, a princípio, mas o roteiro chama facilmente a atenção, além de trazer para o centro o excelente Pantera Negra, também retratado com primazia por John Buscema e George Klein.
A partir da edição #6 a Jungle Action Vol.2 traria como destaque histórias inéditas do Pantera, que ganhou a capa de todas as revistas, até o cancelamento do volume, em novembro de 1976. A única reimpressão em todo o título daí para frente seria a edição #23, que é uma trama do Pantera ao lado do Demolidor. Este presente compilado de críticas aborda as histórias das edições #6 (setembro de 1973) a 18 (novembro de 1975).
A saga começa com uma dobradinha de roteiros intensos, algo que se tornariam a marca do título: A Fúria do Pantera e Regimentos Letais Sobre Wakanda. Muito rapidamente mergulhamos em um drama pessoal e político que não imaginávamos em uma história de super-herói nos anos 70. O Pantera passou muito mais tempo fora de Wakanda do que deveria. Após o seu encontro com o Quarteto Fantástico e a luta contra Ulysses Klaw, o Garra Sônica, o monarca africano esteve envolvido em algumas histórias com os heróis americanos até que se mudou para a cidade de Nova York, ao aceitar o convite para ingressar nos Vingadores (The Avengers #52). Um novo mundo se abria para T’Challa. Ele voltou algumas vezes para seu país, mas não de forma definitiva. O rei não tinha como saber, mas o período em que esteve fora mudou para pior a face da nação. Sem um líder com boa medida entre força e coração e um olhar amplo para as necessidades do povo, os oficiais em comando não foram capazes de impedir que algumas tribos afastadas do centro começassem a “cultivar” suas próprias lideranças, todas com sede de poder geral. Um cenário de guerra civil fermentava. E é durante essas condições que T’Challa, enfim, retorna.
Agora pare um pouco e pense no quanto este cenário é simplesmente fantástico e politicamente realista, mesmo que não precisasse ser. Wakanda é um ficcional país africano no Universo Marvel que carrega boa parte das dores das nações daquele continente. É muito interessante ver que neste retorno de um rei ausente temos um país claramente dividido e com alguns questionamentos de capacidade de governo vindos da própria Corte e dos homens de confiança de T’Challa, que muitas vezes ao longo das edições é culpado pelas divisões tribais e pelos massacres que andam acontecendo no interior do país. Embora estivesse lutando contra o mal ao lado dos Vingadores, o Pantera Negra foi negligente com o seu próprio reino. Agora começava a pagar o preço. Mas foi uma experiência necessária. Ele se remediaria a respeito disso no futuro.
T’Challa já havia colhido o primeiro fruto amargo dessa ausência quando enfrentou o Homem Gorila, cuja ação apontava o abandono do país como justificativa para um golpe de Estado. Neste retorno, mostrado Panther’s Rage, o Pantera precisa enfrentar Erik, O Terror Negro (ou Killmonger), que aparece ao lado de seu leopardo de estimação (Preyy) e tem sua origem ligada à presença da Ulysses Klaw em Wakanda, quando T’Challa ainda era criança. Sem aliviar quesitos morais para o Pantera, o roteiro de Don McGregor é muito eficiente ao mostrar as consequências éticas, morais, políticas e sociais para as atitudes de um herói, algo que não é exatamente muito comum nos quadrinhos. Com uma narrativa bastante objetiva, o autor nos mostra T’Challa em algumas “missões de reconhecimento” e encontro com um massacre de Killmonger, o que o colocará em grande fúria e, mesmo ferido, o impulsionará a querer retomar o controle do país o quanto antes. Isso porém, demoraria um ano inteiro para acontecer. A saga A Fúria do Pantera se passa ao longo deste período.

Belíssima composição de narrativa visual com o personagem caindo na cachoeira.
Como se não bastasse, temos na edição #7: Death Regiments Beneath Wakanda!, a primeira aparição de Veneno (Venomm ou Horatio Walters) e as coisas não melhoram para o Pantera. É aberto um cerco político cheio de figuras mortais que não mandam recado e querem tirar o Pantera do poder. Embora a edição #7 termine esse primeiro encontro entre o herói e seus antagonistas políticos, a ação é organicamente empurrada para a revista de número #8, Malícia Sob o Luar Sangrento, onde já vemos Veneno preso, mas a jornada para colocar Wakanda nos eixos parece longe de terminar. Dá-se então a primeira aparição completa da Maligna (Malice), uma exímia lutadora, soldada do Terror Negro. Segue a jornada de T’Challa para limpar o país das mãos dos separatistas que organizam massacres para fazer valer opiniões políticas, treinando soldados e “dando esperanças para quem não tem“. Aliás, esta é a justificativa de Maligna para ter se juntado a Killmonger: ele deu poderes a ela, mostrou coisas que “sua mãe ignorante” não conseguia ver. A essência da tática de grupos extremistas.
No meio de toda essa movimentação, dá-se um ritual de reconexão do personagem com a mágica (ou mistura de mágica — especialmente herbologia — e rituais africanos tradicionais) que lhe apura os sentidos e o permite ser rápido e quase imbatível. Desde a edição #6 isso vinha sendo programado, dando a entender que o personagem estava meditando, se aproximando da terra que deixara para trás antes de se juntar aos Vingadores. Aqui, esse ritual é executado formalmente, embora não se complete. Não é uma origem, no sentido de criação do personagem, mas temos uma tentativa de “novo começo” para T’Challa. Durante a cerimônia, Monica Lynne, mulher negra americana que ele levou para Wakanda (dá a entender que ele a salvou de algo, mas nada é explicado até o fim desta saga) interrompe o ritual, achando que estavam fazendo mal ao monarca. Em um cenário de perseguição, não é difícil as pessoas terem paranoia com assassinato político. Isso, porém, custaria bastante à personagem.
A primeira origem apresentada é a história de Veneno, de como ele foi desfigurado por alguns valentões na escola e de como, por acidente, se encontrou com Killmonger e acreditou que em Wakanda haveria um lugar para ele. O curioso — e isto é algo que sempre sentimos em vilões bem construídos — é a forma como o roteiro não torna a maldade pura e simplesmente um espetáculo para se condenar pela simples dicotomia entre bem e mal. Ela é uma atitude corrente da pessoa, precisa ser punida. Todavia, não a vemos como uma coisa gratuita, embora não existam justificativas para o que ela causa. Mesmo que não concordemos com o pensamento dos vilões sobre como agir diante de um golpe de Estado, presenciamos personagens muito ricos surgindo em torno do Pantera.

Soberba apresentação artística do Rei Cadáver, ao lado do Barão Macabro.
Na edição #9, Mas Agora as Lanças se Partiram, nos convencemos de que T’Challa não terá pausa em sua jornada de retomada do território e até de moral política em sua própria terra. Nesta aventura, ele se encontra com outro emissário de Erik Killmonger, o Baron Macabre, que aqui faz a sua primeira aparição nos quadrinhos. Don McGregor realiza a sua bem colocada homenagem aos zumbis de Romero em A Noite dos Mortos Vivos (1968) e expõe T’Challa ao poder do Barão e seus supostos “mortos”, enfrentando uma armadilha que, mais uma vez, apresenta detalhes sobre o comportamento do herói diante das mais estranhas situações — lembremos que a edição começa com ele em uma corrida/luta contra um rinoceronte. É praticamente impossível não admirar o Pantera Negra a cada nova publicação.
E as coisas pioram na Corte. Desde o início dessa fase vimos a forma como os súditos tratavam o interesse amoroso de T’Challa, a bela Monica Lynne, agora acusada de ter assassinado Zatama. As camadas de preconceito étnico e de xenofobia ganham relevo neste cenário e a dúvida sobre a conduta de Monica é plantada, assim como o desafio e impertinência dos súditos, acusando o líder de profanar os rituais sagrados (importante lembrar que T’Challa só concluiu a sacrossanta cerimônia do Pantera apenas uma noite antes dos eventos da edição #9) e permitir estrangeiros na Assembleia local. Isso tudo porque Monica é uma mulher negra, só que vinda dos Estados Unidos! Mais uma forma interessantíssima de o autor nos apresentar percepções tribais e relação entre etnia, política e cultura dentro de um pacote só, sugerindo que o trauma da invasão do Garra Sônica, anos antes, tenha criado um verdadeiro pavor na população.
Em O Rei Cadáver Está Morto e Vive em Wakanda (edição #10), vemos T’Challa dividido entre Monica e o dever para com seu povo. Novamente temos o início com uma luta do herói contra um animal, um crocodilo gigante. O texto elenca essas batalhas como uma espécie de treinamento para uma jornada que, a partir dessa edição, irá se tornar um grande bloco sequencial, abarcando todas as andanças do Pantera até o encerramento da saga na edição #18, um epílogo que coloca a pedra final no que restou da épica batalha contra Killmonger, na edição #17. Este último suspiro traz o interesse amoroso do vilão, Madame Slay, que é acompanhada por um gigante e alguns leopardos. O encontro com o Barão Macabro e o King Cadaver é um dos momentos mais pavorosos e visualmente incríveis desta fase. Aliás, o fato de estar em um ambiente exótico para um olhar cosmopolita faz com que McGregor se utilize dos animais como totens que levarão a trama adiante, sempre investindo na dualidade “ambiente selvagem” versus “tecnologia inesperada” que se esconde por quase todos os lugares do país.

Uma visita às terras geladas de Wakanda.
Em Depois de Matar o Dragão temos a primeira aparição completa do Lord Karnaj, enfrentando o Pantera e seus soldados em um estupendo cenário de batalha. Para alguns leitores, o flashback desta sequência pode ser mal colocado ou até exagerado, mas pensem na intenção dramática de sua aparição aqui, nas coisas que ele traz à memória (preenchendo buracos deixados desde o encontro com o Rei Cadáver) e a forma inteligente com que é inserido no contexto. Os destaques para W’Kabi e Taku dentro da história e a colocação, na mesma batalha, de Malícia e do Barão Macabro tornam a coisa inteiramente épica. Toda a edição é uma reflexão sobre a guerra, as vidas que ela desperdiça, os inocentes que mata e os horrores permanentes que causam em um povo.
Até o final da saga surgem mais sete histórias (Manchas de Sangue na Neve Branca, .O Assassino dos Deuses, Serpentes no Paraíso, Espinhos no Corpo, Espinhos na Mente; Todas as Décadas Passadas Viram Revoluções, Of Shadows and Rages e Epílogo) que marcam uma via crucis do Pantera em busca de Killmonger, conhecendo mais dois espaços tenebrosos de Wakanda, a Terra da Névoa Fatal e o Vale das Serpentes, tendo ainda que enfrentar os vilões Sombra e Salamander K’Ruel. À medida que nos aproximamos do final, o roteiro nos cerca de uma sensação de “dever cumprido”, embora ainda fique muito claro que a luta deva continuar. Até surpresas agradáveis e enigmáticas, como a do espírito “Mokadi” em forma de pigmeu, vem para adicionar uma visão de completude e entendimento total do protagonista para o caos que estava a sua nação, ao mesmo tempo que começa a colher os frutos de sua investida contra Killmonger e seus asseclas, terminando com a batalha que, infelizmente, é vencida com um peso questionável (porque a ação final não é do Pantera), mas ainda assim, compreendemos a intenção do autor e o peso dramático para o personagem que “faz o movimento final”. Durante todo o tempo, o texto não mergulha em facilidades para o herói se livrar das armadilhas e nem corre para fazer com que os impasses políticos sejam resolvidos ou os dramas humanos (de T’Challa e personagens coadjuvantes) colocados de fora. Tudo cabe nesse Universo.
O projeto artístico aqui é outro grandioso triunfo. Ele já começa aplaudível, mas ainda buscando meios de melhor representar o cenário africano e as investidas do Pantera a cada nova história. Pelas mãos de Rich Buckler (edições #6 a 8), e Gil Kane (#9), temos uma introdução ao que viria ser a cereja do bolo de todo o bloco: a arte de Billy Graham entre as edições #10 a 18. Seguindo os passos de Kane e Klaus Janson, Graham chega ao título ressaltando todas as possibilidades de movimento do corpo e interação dos indivíduos com o espaço que se pode pensar, e isso fez com que uma positiva revolução acontecesse na diagramação da revista, tornando a leitura cada vez mais dinâmica e com os mais diversos modelos de colocação dos parágrafos narrativos, dos balões de fala e das onomatopeias, coroando todo o projeto com páginas duplas de tirar o fôlego.

O momento onde o contra-ataque contra os vilões começa a surtir efeito.
A aplicação de cores por Glynis Wein é outro grande destaque das revistas, que junto com a arte de Billy Graham e a finalização de Janson (até a edição #12) e de outros artistas nas edições subsequentes, tornam A Fúria do Pantera Negra uma jornada da qual o leitor não consegue tirar os olhos. De obstáculos geográficos, enfrentamento de vilões deformados, presença de animais pré-históricos e flora e terreno traiçoeiros, a parte visual dessas revistas respeita, assim como o texto, os modelos culturais, físicos e naturais do continente que procura representar, ao mesmo tempo que não deixa de tomar licenças fantasiosas para o espaço. Wakanda é um país fictício e cheio de surpresas. Tudo é possível, ali. É mais do que um leitor de quadrinhos poderia pedir.
Todos os pontos técnicos de A Fúria do Pantera estão bem estruturados em contexto e coesão narrativas, nunca perdendo de vista o objetivo principal de uma história em quadrinhos, que é divertir o leitor. Não há dúvida nenhuma de que este é um dos melhores títulos da Marvel Comics durante os anos 1970. Uma instigante saga política misturada com ação, impasses amorosos e familiares, choque cultural, fantasia geográfica e “história das selvas” de alta qualidade dramática e artística. Ao fim, estamos tão apegados ao Pantera, seu país e suas lutas, que nos sentimos um pouco wakandanos também, quase nos segurando para não gritar “Vida longa a T’Challa! Viva o Pantera Negra! Wakanda para sempre!“.
Jungle Action Vol.2 #6 – 18: Panther’s Rage (EUA, setembro de 1973 a novembro de 1975)
Nota: Edição #5: reimpressão da Avengres #62
No Brasil: A Fúria do Pantera (edições #6 a 18), Editora Salvat, 2017
Roteiro: Don McGregor
Arte: Rich Buckler (6 a 8), Gil Kane (9), Billy Graham (10 a 16)
Arte-final: Klaus Janson (6 a 12), Craig Russell (13), Pablo Marcos (14), Dan Green (15), Billy Graham (16 e 17), Virgilio Redondo (17), Bob McLeod (18)
Cores: Glynis Wein (6 a 12, 14, 15 a 16), Tom Palmer (13), Michele Wolfman (17), Don Warfield (18)
Letras: Tom Orzechowski (6 a 9), Dave Hunt (10, 12, 18), Artie Simek (11), Joe Rosen (13), Charlotte Jetter (14 e 17), Karen Mantlo (15), Janice Chiang (16)
Capas: Rich Buckler, Frank Giacoia, Gil Kane, Gaspar Saladino, Danny Crespi, Pablo Marcos
Editoria: Roy Thomas (6 a 13), Len Wein (14 a 17), Marv Wolfman (18)
275 páginas