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Crítica | A Fuga das Galinhas

por Leonardo Campos
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Um marco na história da animação e na abordagem madura de narrativas geralmente tratadas como material exclusivo para o público infantil, A Fuga das Galinhas é uma produção com debate ainda muito atual e coerente, mesmo depois de seus 20 anos de lançamento. Também, convenhamos, as relações capitalistas continuam mais selvagens do que nunca e a luta entre dominados e dominantes em nossa sociedade de classes se apresenta como a sina da humanidade, aqui representada pelo viés dos galináceos que vivem relações de opressão e alienação em seu cotidiano quase que exclusivamente voltado ao trabalho. Produzido pelo Aardman Studios, sob a direção de Peter Lord e Nick Park, o filme foi um projeto que passou por longa gestação e ganhou o público de maneira devastadora, tornando-se um sucesso de bilheteria e de crítica, além de referência para discussões em várias áreas do saber, em especial, os ensinamentos no bojo da Liderança e Empreendedorismo, relações pessoais, etc.

Ao longo de seus 95 minutos, A Fuga das Galinhas nos apresenta uma estrutura narrativa que começa simples e vai ampliando a sua complexidade ao passo que a história avança, sem necessariamente perder o foco em atingir todos os públicos. Na granja Tweedy, há algo de fervoroso acontecendo com os galináceos que usam óculos, tocas, possuem dentes e se comunicam tal como os seres humanos. Sob forte vigilância da Sra. Tweedy, a dona do empreendimento estressante e opressivo, as aves precisam lidar com o regime de trabalho degradante, algo que as deixam entre a vida e a morte, pois a regra é manter a produtividade e entregar ovos cotidianamente. Quem não alcança a meta almejada, vai direto para a panela. Horrorizadas com a situação, as galinhas passam a pensar nas estratégias de Ginger, personagem que ocupa o posto de líder de um movimento em prol de melhores condições de vida, algo que ali só pode ser alcançado pela fuga que intitula a narrativa.

Alienadas, as criaturas não conhecem o mundo que as cerca, pois a vida não passa dos muros desta granja situada em Yorkshire, na Inglaterra. As coisas começam a mudar com a chegada do galo Rocky, supostamente voador, além de galanteador que para fins narrativos, tentará conquistar Ginger e outras galinhas do espaço com a sua fama de cantor recém-chegado dos Estados Unidos. Ele ocupa o lugar do estrangeiro que se estabelece no local para mostrar aos demais que há muita coisa no mundo para ser contemplada além daqueles muros, opressores não apenas dramaticamente, mas visualmente, criados pela equipe técnica com menção aos campos de concentração nazistas. Ginger não deixa de ser protagonista de sua história, mas Rocky, mesmo falador de mais e eficiente de menos, a ajudará na emancipação alcançada próxima ao desfecho desta animação profunda em diálogos e com ação retardatária, mas empolgante quando é estabelecida em cena.

Típica líder de seu movimento, Ginger é uma ótima personagem para leituras marxistas. Repreendida por sonhar demais por algumas galinhas e, por sua vez, encorajada por outras que acreditam piamente na força de seus ideais, ela atravessa momentos de garra e descrença, força e fragilidade, tal como todo representante de um posto de liderança. A exploração que elas vivem no local reflete a dominação e o poder do capital que esmaga o proletariado e cobra um preço altíssimo pela manutenção de suas vidas. Ali, ou cumpre a cota ou se torna mais uma galinha abatida, da mesma maneira que ocorreu com Edwina, transformada em recheio de torta depois que parou de entregar adequadamente a sua força de trabalho, isto é, a quantidade desejável de ovos. E agora, com a chegada da máquina de produção de tortas de frango, algo que representa a automação dos processos, a sobrevida dos galináceos está com os dias contados mais vertiginosamente, o que pede uma estratégia de fuga rápida para evitar ser apenas história.

Interessante também observar como o texto de Karey Kirkpatrick emprega os ratos e os cães de maneira bastante funcional para ampliar a complexidade da história em A Fuga das Galinhas, sendo os caninos uma espécie de representação da polícia, opressora e disposta a conter movimentos que mexam com a ordem estabelecida, neste caso, o regime da Sra. Tweedy, agressiva e manipuladora até com o seu marido, um homem bobo e sem vontade própria no desenvolvimento do filme. Já os ratos, funcionam como os malandros da narrativa, criaturas que ocupam a ambivalência do discurso, pois atendem aos interesses de quem lhe for mais favorável, alívio cômico, por sinal, pois mesmo que a produção seja tratada como animação para todas as idades, há muitos elementos assustadores além da superfície, angustiantes e conectados com a nossa realidade nada animadora.

Feito em stop-motion e com adição de efeitos digitais apenas para os toques finais, A Fuga das Galinhas é acompanhado musicalmente por John Powell e eficientemente editado por Robert Francis, profissionais que dão ritmo e volume ao material visual da dupla diretora. No texto de Karey Kirkpatrick, podemos encontrar alusões claras ao clássico Fugindo do Inferno, de 1963, além de menções paródicas aos dramas Um Sonho de Liberdade e Inferno nº 17, além do épico Coração Valente. Ademais, em suas leituras múltiplas, a animação é ótima ao possibilitar o debate sobre trabalho em grupo. Em seus desdobramentos, observamos os processos individuais que regem os mecanismos de internos para o alcance de um objetivo. Esforço, trabalho unificado, metas bem definidas, planejamento estratégico, negociação de parcerias, observação dos membros do grupo e reconhecimento de habilidades e competências, bem como questões sobre falhas na execução de propostas e persistência diante do que está projetado.

A Fuga das Galinhas (Chicken Run, Estados Unidos/Reino Unido – 2000)
Direção: Peter Lord, Nick Park
Roteiro: Karey Kirkpatrick
Elenco: Julia Sawalha, Mel Gibson, Jane Horrocks, Imelda Staunton, Lynn Ferguson, Timothy Spall, Miranda Richardson, Phil Daniels
Duração: 84 min.

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