Alguns filmes que assisti dentro do contexto do Festival Olhar de Cinema 2020 usam uma narrativa com base em imagens de arquivo. Porém, entre todos eles A Flecha e a Farda talvez seja o que mais proporciona algo novo a esse tempo pretérito que volta à tona em formato de obra cinematográfica. Trata-se de uma literal redescoberta do passado com ressignificação do presente, não sendo apenas sendo um olhar contemplativo-nostálgico ou apenas um próprio resgate de culturas/pessoas esquecidas, casos de Playback: Ensaio de uma Despedida; Fakir e Além de Tudo, Ela.
Diferente dessas outras obras cuja força criadora resiste na intenção de seu realizador em ir atrás de um material já existente (mas negligenciado), A Flecha e a Farda parece surgir a partir da força da própria imagem em si, que só veio à tona agora. Logo, estamos diante do passado, mas que também é algo novo ao presente. Justamente por isso, trata-se de um filme investigativo, que busca respostas no Hoje para responder o Ontem, diferente de outras abordagens afastadas ou passivas. Assim, o principal contraste entre tais obras também está nesta diferenciação entre onde o mistério reside: naquelas, a documentação é clara e objetiva, sendo o diretor aquele que escolherá sua aproximação frente a este material; já aqui a imagem é, em sua essência, nebulosa, sem contextualização ou informação o suficiente, como um enigma que precisa ser resolvido. Não há opção para o diretor Miguel Antunes Ramos senão ir atrás dessas respostas.
Além disso, a investigação de A Flecha e a Farda não só se limita a sua investigação a nível micro, mas (in)diretamente também fala sobre o próprio Cinema Brasileiro (ou melhor, o Brasil) na escala macro. Em um certo momento do documentário, um dos indígenas questiona o fato de que, enquanto o “cinema branco” existe em abundância, o registro indígena na película é precário e faltoso. Então, a partir disso, o que se se dá é uma própria busca pela representação indígena de modo geral e um apagamento de um trecho da história no Brasil.
Neste mesmo sentido, é muito interessante o momento em que Miguel analisa o modo que o diretor do arquivo recém-descoberto olhava os indígenas por meio de sua mise-en-scène, quase como uma própria crítica de cinema dentro do filme, mostrando que há uma compreensão do cineasta não só em entender o conteúdo daquelas imagens, mas que compreende que existe toda uma significação na própria forma, que muito tem a acrescentar e complementar, a partir das entrelinhas. Por exemplo, este é o caso de quando Miguel repara que o outro diretor dava destaque aos cabelos dos indígenas, a única individualização daquelas pessoas dentro de um contexto de uniformização militar.
Por se tratar de um filme investigativo, que tem sua ação no presente, nem sempre a vontade do diretor pode ser satisfeita. Curiosamente, esta lacuna de todas respostas gera uma própria atmosfera carregada que complementa o mistério em si daquelas imagens. Uma vez que o capitão que comandou aquele regimento do exército composto por indígenas não quis dar entrevistas, sua presença se torna equivalente a de um fantasma, ainda mais porque os relatos dos indígenas sobre ele são assustadores. No fim, A Flecha e a Farda busca espantar este fantasma, tentando compreendê-lo, para poder seguir em frente, desta vez, só com a flecha.
A Flecha e a Farda (2020) — Brasil
Direção: Miguel Antunes Ramos
Roteiro: Ernesto de Carvalho, Miguel Antunes Ramos, Tainá Muhringer
Duração: 85 mins.