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Crítica | A Filha Perdida

A maternidade examinada sem verniz.

por Ritter Fan
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Por incrível que pareça, a honestidade e a sinceridade – aquelas verdadeiras mesmo, doam a quem doer – podem machucar profundamente. Afinal, vivemos em um mundo em que as aparências dominam, sejam os atributos físicos das pessoas, algo obviamente mais facilmente abordável, sejam os atributos mentais, que já começam a ganhar mais complexidade quando é objeto de discussão, ou o que a sociedade como um todo espera de comportamentos variados, um terceiro vértice que, se for encarado de frente, tem potencial de atropelar tabus, convenções e conceitos tão enraizados em todos nós que chega a ser difícil reconhecê-los e, se reconhecidos, relativizá-los.

Somos tão condicionados a mentir para manter uma suposta harmonia civilizatória que temos dificuldade de aceitar a verdade pessoal de cada um de nós. Obviamente que não falo de verdades científicas e tampouco crenças ou posicionamentos que afetam a sociedade ou mesmo terceiros diretamente, mas sim aquelas verdades que ficam escondidas em um cotidiano em que a regra é “sorrir e dar bom dia” e não falar nada que não seja diferente do que o que se quer ouvir se o objetivo não for ter como reação caras feitas, gritaria e até violência, seja verbal ou física. E provavelmente não existe assunto mais delicado e ao mesmo tempo mais enterrado profundamente pelos sustentáculos da “moral e dos bons costumes” do que maternidade.

Falo de maternidade mesmo, não paternidade, assunto semelhante, sem dúvida, mas com muito menos força e, principalmente, com muito menos exigências da sociedade sobre o pai do que ela exerce sobre a mãe. Ser mãe é padecer no paraíso, não é mesmo? Mais ainda, ser mãe é obrigação de toda mulher, lógico. Tudo tem que ficar em segundo plano – carreira, amor, viagens, vida! – em razão da maternidade, da sagrada maternidade. Guardadas as devidas proporções, é isso que todos nós “esperamos” (uso a primeira pessoa do plural para basicamente definir nós, homens) das mulheres se formos verdadeiramente honestos (olha a honestidade aí de novo). E é por isso que A Filha Perdida é uma obra rara, difícil, incômoda e desafiadora em todos os seus sentidos.

Adaptação do romance La Figlia Oscura (A Filha Perdida mesmo por aqui), quarta obra de Elena Ferrante originalmente lançada em 2006, o longa de estreia de Maggie Gyllenhaal na direção e roteiro é um sincero exame sobre a “felicidade da maternidade” tendo como personagem central uma mulher de meia idade que teve duas filhas muito cedo em sua vida que, em férias na Grécia, tem suas memórias sobre seu passado de mãe despertadas pelo que vê na praia em que relaxa. O gatilho narrativo é prosaico, com Leda Caruso (Olivia Colman, a Rainha Elizabeth nas 3ª e 4ª temporadas de The Crown) acompanhando uma mãe jovem (Nina, vivida por Dakota Johnson, a Anastasia Steele da trilogia 50 Tons de Cinza) cuidando de sua filhinha de três anos Elena (Athena Martin) quando as duas e a ruidosa família dela, repleta de agregados, invade o pacífico local em que estava. A partir daí, vemos Leda lidando com suas memórias no presente, o que nos leva a flashbacks para sua juventude (com Leda vivida por Jessie Buckley, a enfermeira homicida da 4ª temporada de Fargo), casada, tentando firmar-se em sua carreira, e com suas filhas ainda pequenas.

O que espanta no filme é, primeiro, a naturalidade com que Maggie Gyllenhaal vai aos poucos desatando os nós que podem, no início, fazer seu longa parecer mais hermético do que ele realmente é. A diretora de primeira viagem não só conseguiu escrever um roteiro que passa longe do didatismo, como é tremendamente eficiente em criar imagens visuais indiretas sobre o drama de Leda nos dois momentos temporais que testemunhamos. A maternidade jovem de Nina desencadeia emoções – e ações! – por parte da protagonista que não são automaticamente racionalizáveis ou, temos que ser sinceros, relacionáveis. A segunda característica principal do trabalho da atriz transformada em diretora é manter suas observações visuais muito próximas de Colman, o que acrescenta uma camada extra de incômodo ao espectador, que não tem a escolha de ver nada que não seja exatamente aquilo que Gyllenhaal quer que vejamos.

E o melhor é que o texto até pode partir de convenções que aninham o espectador em algum lugar confortável nos minutos iniciais, mas ele para por aí nessa pegada, logo partindo para o que torna o longa realmente difícil (não no sentido de complexo, mas difícil mesmo de assistir), que é a visão de Leda sobre sua vida de mãe, algo que deixou para trás há muito tempo. Além disso, as lentes da diretora, apesar de inclementes no que deseja mostrar – sempre sem fazer o uso fácil das belezas naturais gregas, pois até a praia em que grande parte do longa que passa é simplesmente “normal” -, não julgam. E isso é mais valioso e mais difícil de fazer do que muitos podem imaginar. Toda a distribuição espacial dos cenários (com filmagens 100% em locação) precisa ser milimetricamente pensada de maneira que a mensagem visual não seja paternalista, não parta de cima para baixo, não diga que é assim ou assado que os personagens devem se sentir e, mais importante que isso, que nós, espectadores, devemos nos sentir.

Muito ao contrário, o filme nos deixa livres para pensar no problema posto: a maternidade sem as idealizações da maternidade de anúncios de TV, sempre colorida, fácil e bonita; ou da maternidade de conversas entre amigos que, não demora, se transforma em uma espécie de competição sobre quem dá mais duro ou quem tem o filho mais maravilhoso. E é isso. Não interessa a Gyllenhaal oferecer respostas ou mastigar soluções. Na verdade, ela não quer sequer saber de fazer as perguntas. Suas câmeras apenas mostram. Mostram vagarosa, mas constantemente, os dilemas “das Ledas” que se refletem na vida da jovem Nina e da ainda mais jovem Elena, dilemas esses que se mantêm subconscientes e apenas pouco a pouco vão emergindo.

Não sei se a essa altura da crítica eu preciso falar da atuação de Olivia Colman. A atriz que aborda cada um de seus papeis de cinema e televisão sempre como se fosse o trabalho mais denso de sua carreira, está de novo brilhante. O filme não ficaria de pé sem que sua Leda fosse convincente em suas ações e reações desde os primeiros segundos de projeção quando nós a vemos chegar no apartamento alugado na paradisíaca (em tese, pelo menos) ilha grega. Não é toda atriz (ou ator) que consegue aguentar os close-ups que Gyllenhaal faz questão de usar constantemente. Esse tipo de escrutínio visual é para poucos e Colman parece estar sendo observada como Leda o tempo todo, jamais deixando “Colman” aparecer. Jessie Buckley, apesar de muito bem também, consegue apenas segurar as pontas em comparação com sua colega de filme, sendo uma bênção para ela que as duas jamais, por razões óbvias, precisem contracenar, mas merecendo comendas por conseguir evitar soluções de continuidade visual apesar das diferenças físicas entre as atrizes. A única coisa que realmente me incomoda é a escolha da diretora e roteirista em fazer de Leda uma personagem americana. Não que ela precisasse ser italiana como no romance que deu origem ao longa, mas contratar duas atrizes britânicas (ok, Buckley é tecnicamente irlandesa) para viver uma personagem americana me pareceu um malabarismo desnecessário e que elas nem sempre convencem em razão da permanência de nesgas de sotaque aqui e ali.

A Filha Perdida parece um filme de diretor e roteirista de larga experiência e é simplesmente impressionante que Maggie Gyllenhaal consiga fazer o que faz logo na largada e com um material fonte tão desafiador em razão de sua matéria árida e que constantemente vai em direção oposta ao que é esperado especialmente quando o assunto maternidade é o centro de discussões. Com maternidade não se brinca e a diretora/roteirista não brinca mesmo e expõe o que muitas mães devem sentir em diversos momentos da vida como mãe sem se valer de saídas fáceis ou de soluções prontas hollywoodianas. Trata-se de um longa que precisa ser digerido lentamente – e o gosto é amargo, não tenham dúvida – e com um olhar sincero e honesto para dentro de cada um de nós, mesmo que essa sinceridade e honestidade sejam “feias e desagradáveis” aos olhos externos que julgam sem conhecer, com base em convenções inamovíveis, e sem um pingo de empatia.

A Filha Perdida (The Lost Daughter – EUA/Grécia, 31 de dezembro de 2021)
Direção: Maggie Gyllenhaal
Roteiro: Maggie Gyllenhaal (baseado em romance de Elena Ferrante)
Elenco: Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson, Ed Harris, Peter Sarsgaard, Dagmara Domińczyk, Paul Mescal, Robyn Elwell, Ellie James, Ellie Blake, Isabelle Della-Porta, Jack Farthing, Oliver Jackson-Cohen, Athena Martin, Panos Koronis, Alexandros Mylonas, Alba Rohrwacher, Nikos Poursanidis
Duração: 121 min.

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