Home FilmesCríticas Crítica | A Ferrugem (2021)

Crítica | A Ferrugem (2021)

O cacoete do cinema ameríndio contemporâneo.

por Michel Gutwilen
322 views

A Ferrugem começa herdeiro da anti-narratividade de Lisandro Alonso (como A Liberdade), ao se debruçar na comunhão de Jorge, um trabalhador rural, com a natureza ao seu redor, no acompanhamento da rotina pautada em tarefas braçais, vistas sob longos planos silenciosos, a não ser pela intrusão dos sons dos pássaros e vento da própria região ou dos assobios que ele usa para se comunicar. O pacto entre este jovem protagonista colombiano e sua terra é estabelecido desde o travelling inicial, que parte das árvores montanhosas e vai mapeando aquela região até ter seu fim nele e sua casa, que fica no alto, concretizando a ideia de uma harmonia. Fora disso, suas conexões são poucas: um interesse amoroso com quem ele se relaciona sexualmente na mata, um avô enfermo que ele precisa cuidar, o cachorro da casa e pássaros. Jorge é um verdadeiro homem trabalhador, que vê nisso uma vida suficiente. 

Só que diferente de Alonso, que lidava com uma ideia naturalista de encenação, com maior liberdade na câmera (uma tour de force da natureza por si só), o diretor Juan Sebastian Mesa segue uma maior precisão formal de seus planos, mais preocupado em estabelecer uma atmosfera pictórica com a exploração de relações de profundidade entre o jovem e a paisagem dominante ao seu fundo, com as neblinas daquela altitude que geram uma fantasmagoria quase que mágica naquele lugar.

Uma outra tendência dominante pela narrativa de A Ferrugem e que o afasta totalmente de Alonso é sua associação com o realismo fantástico, cada vez mais tendência dominante no cinema sul-americano contemporâneo protagonizado por ameríndios. A consequência inerente de todo movimento virar uma tendência (narrativa ou formal) e que impacta principalmente em suas obras tardias é  da sensação, de que a sensibilidade genuína se torna formulaica, entrando em cacoetes narrativos e formais, presos à ideias que já deram certo. Assim, a narrativa de Juan Sebastian Mesa adentra em todos os terrenos já conhecidos deste tipo de Cinema: a doença física como sinônimo de mal estar de uma situação macro, um acontecimento misterioso lacunar sob a qual rondam os acontecimentos, uma tragédia natural como metáfora para algo maior (a peste na plantação), o mágico que se manifesta através de sonhos ou rituais, os espaços que buscam à fórceps uma presença no extraplano etc.

Ainda assim, A Ferrugem possui uma particularidade que sustenta o seu interesse, sendo o principal deles o processo de narrativização da anti-narrativa, que começa com a chegada de um amigo de infância do protagonista, vindo da cidade, e a promessa de uma reunião de “turma”, do seu período de adolescência. É óbvio que isso desemboca em um conflito interno no próprio personagem, que por um lado é atrelado a sua terra e até preso a ela, mas se vê diante da situação da chegada de todos aqueles que foram embora em busca de ganhar a vida, menos ele. 

Dentro deste contexto, Mesa lida com todos os conflitos internos do protagonista a partir de uma abordagem visual e sensorial, como um fluxo em transe, seja nos rituais locais envolvendo a tentativa de cura de sua doença ou na ‘lisergia‘ da droga sintética e da dança ao som de música techno (nada mais oposto a natureza que isto). E aí se mostra curioso ver aquele personagem antes previamente apresentado tão conectado ao natural sob ambientes e luzes artificiais de festas, bebendo e inclusive adaptando seu visual capilar ao ser influenciado indiretamente pelo amigo. Contudo, toda a progressão desses acontecimentos não passam de um “e se…”, de um breve delírio, porque logo as suas raízes com a sua terra chamam ele de volta.

Tendo a crítica deste filme sendo escrita sob o contexto da cobertura do Olhar de Cinema, é curioso como ele se conecta com outra obra exibida logo anteriormente a ele, também na Mostra Competitiva, Freda, que apesar de rumos bastante distintos, possui o ponto de partida em comum de ter uma protagonista que existe em limbo que conflita a vontade de permanecer na terra e fazer com suas raízes familiares/culturais sobrevivam com a tentação de fuga em direção a novas chances motivada pelas dificuldades econômicas que tais regiões apresentam. Só que no caso de A Ferrugem, a necessidade de ficar parece existir muito mais como uma força maior, uma maldição gerada pelo derramamento de sangue e histórias não resolvidas. Neste sentido, o roteiro escrito por Mesa aborda o passado sem grandes explicações, gerando lacunas que permitem deduções por passagens pontuais, como quando Jorge diz que tomaram ilegalmente parte das terras pertencendo à sua família, além do forçoso re-surgimento da figura do pai em suas sequências oníricas. 

Se o passado de A Ferrugem é nebuloso, o futuro também fica em aberto. Até há uma impressão de que este é um daqueles filmes totalmente conscientes de suas ideias, mas sem exatamente saber como fechá-las. Talvez o próprio gesto de recusa de um final vá no sentido do gesto anti-narrativo, mas não se trata aqui de pedir uma narrativa clássica fechada, e sim de constatar uma sensação de que, ao seu fim, parece que ainda deveria ter mais 20 minutos para explorar questões que foram abertas e o próprio estado do protagonista ao final desta jornada precisasse de mais aprofundamento. Ao fim, mais uma pessoa vai embora e Juan se mantém, com os seus 80 minutos de duração sendo um teste de fogo para o personagem resistir e permanecer na terra de origem. 

A Ferrugem (La Roya, 2021) — Colômbia, França
Direção: Juan Sebastian Mesa
Roteiro: Juan Sebastian Mesa
Elenco: Juan Daniel Ortiz Hernandez, Paula Andrea Cano, Laura Gutierrez Ardila
Duração: 84 minutos

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais