A relação dos humanos com mitológicas criaturas marinhas é longa, desde os tempos definidos como Antiguidade, num confronto que, no âmbito ficcional, ainda se encontra presente em narrativas contemporâneas. Lá na poesia homérica, enquanto Ulisses tenta voltar para Ítaca, prejudicado pela punição de Poseidon após o desfecho da Guerra de Troia, o herói enfrenta tenebrosos seres dos mares gregos, desde as híbridas sereias aos monstros gigantescos que elevam o status de guerreiro astuto do personagem. Ao longo da história da humanidade, as grandes navegações em busca de novas terras para dominação europeia também fortaleceram os mitos, com declarações de líderes de empreitadas que supostamente tinham contemplados gigantescos monstros perigosos, numa época onde se acreditava que a linha do infinito promovia a queda das embarcações. Várias versões dos monstros aquáticos foram contadas depois disso, como estratégia dos humanos para explicações daquilo que não era possível compreender em sua totalidade, algo que não é da mentalidade greco-romana ou medieval, afinal, como explicamos o fascínio e o temor das pessoas diante da lenda do Monstro do Lago Ness, assunto que ganhou até mesmo a mídia tradicional em diversas ocasiões.
Ainda no terreno da ficção, Herman Melville concebeu o seu clássico Moby Dick, romance que inspirou elementos de Tubarão, de Peter Benchley e, consequentemente, o seu filme homônimo, dirigido por Steven Spielberg. Neste pomposo reino de representações monstruosas, algumas mais realistas, outras mais fantasiosas, temos ainda espaço para o peixe de grandes proporções enfrentado por Santiago, em O Velho e o Mar, de Hemingway, além do mito bíblico de Jonas e a história de Pinóquio, ambos a lidar com criaturas marinhas misteriosas, responsáveis por colocar as suas vidas em risco. É quando chegamos, pulando outras ilustrações, por questões editoriais, ao lançamento de A Fera do Mar, de 2022, disponível no streaming Netflix. Encantador em sua abordagem sobre reinos empoderados e aventureiros destemidos, a narrativa dirigida e escrita por Chris Williams, mundialmente conhecido por seu trabalho na animação Moana, entrega aos espectadores de diversas faixas etárias, uma saga de emoções e reflexões sobre amadurecimento e importância da amizade na condução de nossa sociabilidade.
Com texto assinado em colaboração, tendo Neil Benjamin também como autor, A Fera do Mar se inspira visualmente nas criaturas da mitologia nórdica para nos apresentar a saga de Maisie Brumble (Zais-Angel Hator), uma garotinha jovem e brava que foge do orfanato em que vive para embarcar clandestinamente em um navio de caçadores de monstros, as temidas criaturas que até então, ela só conhecia nas aventuras literárias. Lá, ela acaba causando algumas confusões e mexendo com a tripulação, em especial, o Capitão Corvo (Jared Harris) e Jacob Holland (Karl Urban), personagens com fortes laços paternais, posicionados nos arquétipos de mentor e aprendiz, equivalência ao lugar de pai e filho, respectivamente. Nestas águas desconhecidas, todos embarcam em inesperadas situações, principalmente depois do incidente com a Bravata Vermelha, talvez a figura monstruosa mais temida pela coroa, responsável por financiar as expedições, tendo em vista os relatos de supostos ataques destes monstros ao litoral.
Oriunda de um orfanato bancado pela realiza que assume as expedições, a garotinha desbravadora é uma órfã de um dos caçadores, abatido numa empreitada anterior. Interessada em se descobrir e forjar a sua própria história sem o comando de outros, a personagem promove momentos bastante humorados nesta aventura acompanhada pelo excelente design de som de Richard King, associado assertivamente ao tom da textura percussiva da trilha de Mark Mancina, ideais para ampliação da atmosfera de emoções proposta pela narrativa que ainda conta com outros memoráveis elementos estéticos, tais como o design de produção de Matthew Hechner, setor responsável pelas cores vibrantes e formatação deslumbrante para as criaturas com assombrosas, mas fascinantes presenças peculiares. A Fera do Mar ainda conta com um meticuloso trabalho na seara dos efeitos visuais em consonância com a animação, desenvolvidos ao longo de três anos, produção assinada pela equipe de Joshua Beveridge, envolto na complexa missão de movimentar a água, trabalhar a agitação do vento e posicionar os monstros dentro de suas respectivas escalas. Em algumas passagens, parece tão realista que pensamos ser uma aventura live-action de primeira linha. Mas não: é uma animação grandiosa, focada no fascínio visual, no entanto, sem deixar o texto dramático ser comprometido pelo espetáculo.
A Fera do Mar (The Sea Beast) – EUA | 2022
Direção: Chris Williams
Roteiro: Chris Williams
Elenco original: Karl Urban, Zaris-Angel Hator, Jared Harris, Marianne Jean-Baptiste, Dan Stevens, Kathy Burke, Jim Carter, Doon Mackichan, Helen Sadler, Emily O’Brien, Mark Rhino Smith, Baraka May, Benjamin Plessala, Somali Rose, Kaya McLean, Davis Pak, Xana Tang, Alex Wyndham, Brian T. Delaney, Ian Mercer
Duração: 115 minutos