Antes da primeira versão sonora de 1930, também protagonizada pelo ator John Barrymore, o clássico romance Moby Dick, de Herman Melville, tinha ganhado a sua primeira tradução intersemiótica para o cinema, lançada em 1926, um sucesso diante do público. Tramas romanescas, aventuras hilariantes, tudo isso embasando a estrutura narrativa de um filme que deixa de lado as complexidades do livro para apostar numa diluição cheia de liberdades criativas, como de fato esperamos de uma adaptação. Aqui, a misteriosa baleia cachalote branca é vencida pelo Capitão Ahab (Barrymore, num desempenho aceitável), escolha dos realizadores que provavelmente buscava maior aderência dos espectadores que esperavam um final menos amargo, afinal, as coisas não andavam nada bem na década de 1920, época de muitas tensões sociais, amadurecimento do cinema enquanto linguagem em processo formativo, dentre outros tópicos temáticos que podem ser contemplados na interpretação dos 120 minutos de A Fera do Mar, tradução que leva ao pé da letra o lance da “inspiração” diante de um ponto de partida. A base para estas mudanças já está no estabelecimento de um triângulo amoroso.
Aqui, o Capitão Ahab e o seu irmão Derek (George O’Hara) competem pela atenção e amor de Esther Wiscasset (Dolores Costello), a filha do pastor. Esqueçam Ismael ou o sermão do padre Mapple. Até a baleia branca cachalote Moby Dick é um tanto abandonada em prol dos dramas propostos pela tradução. Quando ambos se deparam com o misterioso cetáceo numa viagem, o irmão o atira no mar e Ahab acaba perdendo uma de suas pernas. Assim, não ria, caro leitor, o capitão é deixado de lado por Esther, pois não é mais uma opção diante de sua nova limitação. Rejeitado e irado por ter perdido o seu grande amor, o protagonista transfere o seu ódio para a baleia, não para o irmão com comportamento assassino passivo.
Assim, A Fera do Mar continua a sua história, tendo como foco a tristeza de Ahab e a sua ânsia por vingança. Nesta era não sonora, terminologia adequada para os filmes que antes chamávamos de mudos, a aventura rola solta, com as idas e vindas de figuras ficcionais em busca de emancipação numa época de dificuldades financeiras e instabilidade num mundo que mudava vertiginosamente. Nada, pelo que me parece, diferente do que vivenciamos hoje. O famoso Queequeg, aqui interpretado pelo ator Sam Baker, ganha alguma notoriedade, personagem importante para pensarmos as reflexões raciais e sociais de Herman Melville no desenvolvimento de Moby Dick, mais uma vez lembrando, o ponto de partida deste filme.
Em linhas gerais, para os padrões técnicos de sua época, A Fera do Mar é um material interessante enquanto entretenimento, além de nos permitir determinadas discussões sobre comportamento humano, além do espaço que deixa para pensarmos a complexidade das relações de trabalho que ainda ecoam na contemporaneidade, com o capitalismo efervescente e as divisões de classe muito bem definidas, numa mescla entre privilegiados e oprimidos, temos aqui conexões comparativas com aquilo que Victor Hugo criticou no desenvolvimento de Os Trabalhadores do Mar, isto é, a relação entre os pertencentes da escala social desigual de nossas sociedades em transformações constantes. Ademais, na condução do filme, o cineasta Millard Webb cumpre adequadamente o seu trabalho, guiado pelo roteiro de Jack Wagner, Bess Meredyth e Rupert Hughes, material dramático levado para as telas dos cinemas por meio da eficiente direção de fotografia de Byron Hasken e Frank Kesson, profissionais que ajudaram na construção da narrativa com seus planos e enquadramentos não apenas de um navio de batalha real, utilizado na cenografia, mas também miniaturas e cenas marítimas para transmitir turbulência, caos e muitas doses de aventura.
A Fera do Mar (The Sea Beast) — EUA, 1926
Direção: Millard Webb
Roteiro: Bess Meredyth, Rupert Raleigh Hughes, Jack Wagner
Elenco: John Barrymore, Dolores Costello, George O’Hara, Mike Donlin, Sam Baker, Sōjin Kamiyama, George Berrell, Sam Allen, Frank Nelson
Duração: 90 min.